26 de Março de 2025
Cumprem-se agora 30 anos do Sistema de Informação Schengen, hoje a funcionar em trinta países.
O Sistema de Informação de Schengen, Portugal e o espaço de liberdade, segurança e justiça da União Europeia [1]
O Sistema de Informação Schengen (SIS) é, desde 26 de Março de 1995, a principal medida compensatória da supressão do controlo de fronteiras internas entre Estados Membros e a maior garantia da liberdade de circulação de pessoas no espaço Schengen.
Sem o Sistema de Informação Schengen não poderíamos ir de Lisboa a Helsínquia sem termos que mostrar o passaporte em qualquer controlo policial fronteiriço e os camiões de transporte internacional de mercadorias fariam filas intermináveis nos controlos das fronteiras internas ao longo da Europa. Sendo uma realidade que não conhecemos há mais de 27 anos, é difícil conceber que possamos regressar a essa imposição de restrições à livre circulação pelo espaço europeu!
Pode, aliás, afirmar-se que se o acervo de Schengen, incluindo na sua génese o Acordo de Schengen e respetiva Convenção de Aplicação, complementados entretanto por uma série importante de regulamentos europeus hoje em aplicação, criou as condições jurídicas para a concretização de uma das principais liberdades previstas no Tratado da União, o Sistema de Informação Schengen assegura, desde 1995, as condições de segurança necessárias para o seu exercício e constitui-se como a trave mestra da atividade europeia no domínio da cooperação policial e do controlo de fronteiras externas.
Na sua génese, o SIS foi constituído como um sistema de informação com vista à troca de informação policial e judicial no âmbito da cooperação policial, apenas entre Estados Membros.
Contudo, a evolução política da UE, o crescimento da criminalidade transfronteiriça e transacional grave, em particular do terrorismo, veio impor o alargamento do âmbito de aplicação do SIS.
O SIS desempenha um papel crucial, facilitando a livre circulação de pessoas no espaço Schengen e garantindo um alto nível de segurança, apoiando os controles fronteiriços nas fronteiras externas de Schengen, bem como a aplicação da lei e a cooperação judiciária na UE.
Este sistema de informação de larga escala está no cerne da cooperação Schengen, permite que as autoridades competentes insiram e consultem dados sobre pessoas procuradas, pessoas interditadas de entrar ou permanecer na UE, pessoas desaparecidas, principalmente crianças, e objetos (incluindo, armas, veículos a motor, equipamento industrial, barcos, contentores e aeronaves), assim como documentos roubados, desviados ou extraviados (em particular, documentos de identidade, de residência e passaportes).
O SIS é o maior sistema de informação da União Europeia, com cerca de 90 milhões de indicações no final de 2021, e é utilizado por 30 Estados Membros, bem como pela Europol e pelo Eurojust e, num futuro próximo, pela Frontex[2].
O SIS garante a vigilância reforçada das fronteiras externas, apoiando a cooperação policial e judiciária entre as autoridades competentes dos Estados Membros e assegurando a melhor resposta à dimensão transfronteiriça da criminalidade. O SIS é, na sua essência, uma base de dados policiais comum a todos os Estados Schengen.
Cada Estado Membro é responsável pela instalação, funcionamento, manutenção e desenvolvimento ulterior da respetiva parte nacional do SIS (N.SIS) e por assegurar a disponibilidade ininterrupta dos dados do SIS aos utilizadores finais.
Para este efeito, cada Estado Membro designou uma autoridade que assume a responsabilidade central pela sua parte nacional, sendo que a referida autoridade é responsável pelo bom funcionamento e pela segurança do N.SIS, assegura o acesso das autoridades competentes ao SIS e adota as medidas necessárias para assegurar o cumprimento das regras legais europeias aplicáveis. A esta autoridade incumbe assegurar que todas as funcionalidades do SIS são devidamente disponibilizadas aos utilizadores finais.
Neste contexto e atenta natureza eminentemente policial destes sistemas de informação, todos os Estados membros e Estados associados Schengen indicaram autoridades policiais ou departamento de sistemas de informação e comunicação dessas mesmas autoridades policiais como entidades nacionais responsáveis pelas respetivas partes nacionais do SIS e pelos outros sistemas de informação europeus entretanto criados. Em Portugal, a autoridade designada responsável pela gestão do SIS a nível nacional é o SEF [3].
Para que o SIS seja operacionalizado no terreno, cada Estado Membro Schengen dispõe também de uma autoridade que assegura o intercâmbio de todas as informações suplementares («Gabinete SIRENE») e que coordena a verificação da qualidade das informações introduzidas no SIS II. O gabinete SIRENE português, definido na respetiva lei orgânica como “Gabinete Nacional SIRENE”, hoje integrado no Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional do Sistema de Segurança Interna, constitui o ponto único de contacto permanente em Portugal, através do qual são transmitidas todas as informações suplementares necessárias à ação das entidades utilizadoras do Sistema de Informação Schengen.
Com a evolução política da UE, o crescimento da criminalidade transfronteiriça e transacional grave, em particular do terrorismo, veio impor-se, por um lado, o alargamento do âmbito de aplicação do SIS às agências europeias – e não apenas aos Estados-membros – e por outro, o alargamento do tipo de informação a inserir no sistema e o reforço das medidas a adotar no caso de descoberta de existência de indicação relativa a pessoas ou objetos.
Foi assim que no final de uma avaliação exaustiva do Sistema de Informação Schengen, três anos após a entrada em funcionamento da sua segunda geração (conhecida por SIS II), a Comissão Europeia apresentou em 2016 propostas legislativas para alargamento e reforço da capacidade do sistema.
A avaliação realizada demonstrou que o SIS constitui um verdadeiro êxito no plano operacional e, após o competente processo legislativo europeu, foram adoptados, no final de 2018, três novos regulamentos, conhecidos como “regulamentos SIS recast”, ou SIS reformulado: Regulamento (UE) 2018/1860, relativo à utilização do Sistema de Informação de Schengen para efeitos de regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular; Regulamento (UE) 2018/1861, relativo ao funcionamento do SIS no domínio dos controlos de fronteira e o Regulamento (UE) 2018/1862, relativo ao funcionamento do SIS no domínio da cooperação policial e da cooperação judiciária em matéria penal. Estes regulamentos vieram criar uma nova geração do Sistema de Informação Schengen, conhecida a nível europeu como “SIS Recast”, prevendo-se que venha a substituir a breve prazo o SIS II, em funcionamento desde 2013.
Os novos Regulamentos SIS preveem novas funcionalidades, o alargamento de tipos de indicações já previstas, ou mesmo a criação de novos tipos de indicação, designadamente:
- Indicação “retorno”, relativa a decisões de regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular;
- “Impedimento de viajar de crianças” que corram risco de rapto por um dos progenitores, um familiar ou um tutor, ou devido a um risco concreto e manifesto de serem retiradas do território de um Estado-Membro, ou de deixarem esse território e serem vítimas, designadamente, de tráfico de seres humanos ou de casamento forçado, mutilação genital feminina ou outras formas de violência de género, de infrações terroristas ou serem recrutadas ou alistadas por grupos armados;
- “Impedimento de viajar de pessoas adultas vulneráveis” para sua própria proteção devido a um risco concreto e manifesto de serem retiradas do território de um Estado-Membro, ou de deixarem esse território e serem vítimas de tráfico de seres humanos ou de violência de género;
- “Pessoas procuradas desconhecidas” para efeitos de identificação das quais existam dados dactiloscópicos e com grau de probabilidade muito elevado de serem autores de infração terrorista ou outros crimes graves objeto de investigação.
- Criação de “indicação de recusa de entrada e de permanência no espaço Schengen” quando houver suspeita que a pessoa praticou ou está em vias de praticar uma infracção terrorista.
Os regulamentos 2018/1861 e 2018/1862, após a sua plena entrada em vigor, passarão a formar a base jurídica do funcionamento e da utilização do SIS, enquanto o regulamento 2018/1860 complementa o regulamento relativo à gestão das fronteiras.
É importante para esta análise uma referência precisa às condições que têm de verificar-se para que os referidos regulamentos entrem em vigor e se passe a aplicar o SIS Recast:
- adopção pela Comissão Europeia dos actos de execução necessários para a aplicação dos regulamentos;
- notificação pela eu-LISA (Agência Europeia para a Gestão Operacional de Sistemas Informáticos de Grande Escala no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça) de que todas as atividades e baterias de testes relativos ao sistema central (CS.SIS) e à interação entre este e os N.SIS dos Estados-membros foram concluídos com êxito;
- notificação por todos e cada um dos Estados membros de que procederam às alterações e adaptações técnicas e jurídicas necessárias ao tratamento de dados do SIS e ao intercâmbio de informações suplementares nos termos dos regulamentos reformulados.
Neste contexto, bastará um dos Estados membros reportar que não está em condições de implementar o SIS Recast até ao limite do prazo convencionado para notificar a declaração de prontidão, para que todos os outros tenham de aguardar que tal venha a verificar-se. Isto reveste-se de sensibilidade especial dado que, para além de compromissos políticos assumidos pelos Estados-membros, estes assumiram também avultados compromissos financeiros no quadro dos respetivos orçamentos nacionais tendo em vista a preparação, até determinada data, do seu estado de prontidão para aplicação do SIS Recast. Compromissos que podem ser colocados em causa se se verificar um adiamento demasiado longo e incomportável para as cláusulas negociais acordadas pelas autoridades nacionais competentes com os respetivos consultores técnicos.
Reveste-se, assim, de particular importância que todos os Estados membros que aplicam o acervo Schengen procedam às alterações técnicas e legislativas indispensáveis à criação das condições necessárias para a entrada em funcionamento do SIS nos termos previstos nos novos regulamentos, sob pena de um eventual atraso que se verifique num Estado-membro poder representar um atraso na entrada em funcionamento do SIS Recast em todo o espaço Schengen.
Porém, a notificação a apresentar por cada um dos Estados membros está dependente, para além da adoção de alterações legislativas consideradas necessárias, do cumprimento, com êxito, de uma bateria de testes técnicos que vise confirmar o estado de prontidão de cada um dos Estados membros.
O referido estado de prontidão técnica dos Estados membros e das agências está atualmente a ser testado num complexo processo de baterias de testes que envolvem as autoridades designadas pelos Estados-membros.
No caso de Portugal, desde o início da entrada em vigor do acordo e de Schengen e respetiva Convenção de Aplicação e, consequentemente, de um espaço Europeu de livre circulação de pessoas, foi ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que foi atribuída a responsabilidade pelo bom funcionamento e pela segurança da parte nacional do SIS, assim como pelo acesso das autoridades competentes ao sistema e adoção das medidas necessárias para assegurar o cumprimento das regras legais europeias aplicáveis[4].
Fruto do desempenho e compromisso dos profissionais do SEF, Portugal esteve sempre, desde o início do espaço Schengen, na vanguarda dos Estados membros que decidiram pela abolição dos controlos nas fronteiras internas da União Europeia e que passaram a usar as respetivas medidas compensatórias.
Ainda por força das suas atribuições abrangentes e atentas as suas capacidades operacionais e competências tecnológicas, foram atribuídas ao SEF também responsabilidades de gestão dos acessos e funcionamento da parte nacional de outros sistemas de informação europeus mais recentes como, o VIS (Sistema europeu de informação sobre vistos), ETIAS (Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem) e SES (Sistema de Entrada/Saída da União Europeia).
Foram igualmente as capacidades tecnológicas e conhecimentos profundos neste domínio por parte dos profissionais do SEF que estiveram na base da criação de condições para a disponibilização por Portugal, em 2007, aos restantes parceiros Schengen, de uma solução tecnológica (SISoneforAll) que permitiu o acesso ao SIS e respetiva utilização pelos então novos Estados-membros, até que fossem criadas as condições necessárias ao início de aplicação do SIS de segunda geração (SIS II).
Seria, por isso, natural que competindo ao SEF a responsabilidade por assegurar a realização das adaptações técnicas indispensáveis à criação das condições necessárias para a entrada em funcionamento do SIS nos termos previstos nos novos regulamentos, Portugal se apresentasse, nesta fase e perante os mesmos parceiros, com o trabalho de casa cumprido e pronto a ser executado, como sempre o tinha feito até aqui e num domínio com grandes provas dadas.
Porém, atentos os prazos limitados do planeamento para o início de operações do SIS Recast, previsto agora, depois de vários adiamentos, para o último trimestre deste ano, e considerando as informações disponíveis sobre o estado do processo de alterações técnicas, relacionado com o processo de extinção do SEF, verifica-se um risco elevadíssimo de Portugal não conseguir cumprir com o planeamento e calendário previstos a nível da UE. Num domínio em que Portugal dava cartas e se assumia como um dos Estados-membros mais bem preparados e avançados tecnologicamente, passou-se agora para uma situação em que arrisca a constituir-se como causa principal da perturbação e do adiamento da conclusão dos trabalhos a nível da União Europeia e do espaço Schengen.
Do conjunto de Estados membros Schengen, Portugal – surpreendentemente para toda a comunidade europeia que trabalha na área -, é o que se apresenta mais atrasado na respetiva preparação técnica, não existindo sequer indicação de quando poderá reunir condições para conclusão dos necessários testes técnicos.
A este atraso na preparação de Portugal para a aplicação do SIS Recast não serão alheias todas as contingências, prejuízos reputacionais, restrições e constrangimentos orçamentais que, desde o final de 2020, foram impostos ao SEF.
Não estamos suficientemente informados sobre o evoluir do processo de extinção do SEF e de criação de outras estruturas que o substituirão em algumas das suas atuais atribuições. No entanto, o conhecimento de informação publicada recentemente sobre o assunto, indiciando que nem a designação da nova autoridade nacional responsável pela parte nacional do SIS será ainda um processo fechado, leva a recear o pior [5].
O incumprimento por parte de Portugal das condições necessárias à aplicação dos novos regulamentos implicaria um atraso geral do início das operações do SIS Recast em todo o espaço Schengen ou, em alternativa, mas não menos nefasto, a possibilidade de Portugal vir a encontrar-se na contingência de ficar impossibilitado de aceder e utilizar uma base dados policiais tão relevante como é o SIS e correr o risco de lhe ser imposta a suspensão de permanência no espaço Schengen devido ao incumprimento das condições básicas exigidas para a aplicação da principal medida compensatória da abolição do controlo nas fronteiras internas.
A presente situação representa um risco efetivo de prejuízo para a imagem externa do País e neste momento são ainda incalculáveis os potenciais efeitos que tal situação poderá ter na posição de Portugal perante os seus parceiros europeus e Comissão Europeia e no seu enquadramento no espaço de liberdade, segurança e justiça da União[6].
26 de Março de 2025
Jorge Portas, antigo Coordenador do Gabinete Nacional SIRENE
[1] Texto base deste artigo foi publicado originalmente na Revista “Segurança e Defesa”, nº 44, de Julho de 2022, sendo agora meramente atualizado com as notas de rodapé 3 a 6.
[2] Por Estados Membros deverá entender-se os Estados Membros da UE ligados ao SIS (Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polónia, Portugal, República Checa, Roménia e Suécia), incluindo a Irlanda que se ligou ao SIS em março de 2021 para efeitos de troca de informação no âmbito da cooperação policial e judiciária e os Estados Associados que aderiram ao SIS II (Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça).
[3]Actualmente, em consequência da reestruturação do sistema português de controlo de fronteiras, essa responsabilidade encontra-se atribuída à Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros (UCFE), integrada no Sistema de Segurança Interna (cfr. Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho, e Decreto-Lei n.º 99-A/2023, de 27 de outubro )
[4] Vide nota 3.
[5] A Lei n.º 73/2021, de 12 de novembro, que aprovou a reestruturação do sistema português de controlo de fronteiras e procedeu, na prática, à extinção do SEF, entrou em vigor no dia 29 de outubro de 2023, com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 41/2023, de 2 de Junho, que criou a AIMA.
[6]Portugal conseguiu, na 25ª hora, reunir as condições necessárias à aplicação dos novos regulamentos e o sistema SIS reformulado pôde entrar em funcionamento, finalmente, em 7 de março de 2023, ainda antes da extinção do SEF. No entanto, temos informação de que os problemas técnicos e operacionais continuam, com o Gabinete Nacional SIRENE a enfrentar actualmente graves problemas operacionais.