O Sistema do Avesso
Elementos da GNR e PSP envolvidos em rede de exploração de imigrantes
“Tal enunciado é fato ou ficção, original ou cópia? Quem é agente e quem é paciente, ação e reação? Tal comportamento é espontâneo ou manipulado, público ou privado? A intenção dessa pessoa é autêntica ou espúria? Em quem posso confiar?”
Pedimos de empréstimo as palavras iniciais a Letícia Cesarino, extraídas do seu ensaio “O mundo do avesso” sobre a verdade e política na era digital, para as adaptarmos às circunstâncias do actual sistema nacional de controlo de fronteiras e gestão de imigração.
O SEF era um Serviço de Segurança que se caracterizava por conter no seu seio competências e valências de um serviço de imigração integral, desde a avaliação e emissão de pareceres sobre vistos consulares até pareceres sobre aquisição de nacionalidade, passando pelo controlo de movimentos de pessoas nas fronteiras, análise e emissão de documentos de residência, fiscalização de permanência de cidadãos estrangeiros, fiscalização de empregadores de mão de obra estrangeira ilegal, instrução, decisão e execução de medidas de afastamento de território nacional, instrução de pedidos de proteção internacional, investigação de crimes de tráfico de seres humanos, auxilio à imigração ilegal e crimes conexos, e representação competente e consistente de Portugal em diferentes fora internacionais sempre que se discutiam matérias de imigração e asilo.
Neste quadro de atribuições, os funcionários do SEF, inspectores da Carreira de Investigação e Fiscalização, funcionários do regime geral e técnicos de informática, exerciam as suas competências com sentido de dever e missão, com respeito pelos direitos dos outros, em particular dos mais vulneráveis como os imigrantes, motivados pela coerência dos objetivos e missão em que se baseava a razão de ser do SEF.
E não, Senhor (ainda) Presidente da República, não é por causa de uma grave ocorrência envolvendo três inspetores no aeroporto de Lisboa e por ter apregoado levianamente a existência de um problema sistémico no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que o SEF deixou de ser um Serviço que era reconhecido como competente, conhecedor, experiente, humanista e necessário. Estão aí as páginas do nosso site para o documentar, assim, como as muitas notícias sobre imigração que por estes últimos tempos nos assolam. Acresce ainda que o próprio relatório da IGAI à data reconheceu e afirmou que o problema não era sistémico no SEF mas… estranhamente, já ninguém apregoou Senhor ainda Presidente!
Desde há quase cinco anos (sete contando com as absurdas alterações legislativas à lei de estrangeiros que se repercutiram no SEF e na realidade nacional) que nos espantamos com os erros que se foram cometendo nesta área de política nacional e que, depois de uma completa desregulação da gestão migratória, culminou com a extinção do Serviço.
Recordamos, quase cinco anos decorridos, a lamentável (para não empregar outro termo) reunião entre Sua Excelência o Presidente da República e o então Diretor Nacional da PSP, em que este último garantiu que a sua instituição estava pronta para assumir as competências do SEF.
Passados cinco anos, a PSP continua a não estar preparada.
Veja-se: necessidade reconhecida de manutenção de inspetores da PJ, ex-SEF, no controlo de fronteiras aéreas; o anunciado apoio da Frontex em 2026 (com equipa que integrará também alguns elementos ex-inspectores SEF); as queixas de burnout dos elementos da PSP em exercício de funções no posto de fronteira do aeroporto de Lisboa; as reivindicações sindicais de sindicatos da PSP, com ameaças e realização de plenários e queixas de faltas de pessoal; a criação de uma unidade nacional de estrangeiros e fronteiras, para execução de atribuições que não chegam a 50% das competências que detinha o SEF, com uma dotação de elementos inicial de 1.200 agentes e chefias e comandantes (50% superior ao número de inspectores que compunha o quadro da carreira de investigação e fiscalização do SEF) e que ambiciona chegar aos 2000 agentes; as queixas expressas por companhias aéreas e embaixadas de países terceiros a alertarem para o caos no controlo de fronteira do aeroporto de Lisboa, etc, etc, …
Para além disto, lemos e ouvimos representantes da PSP a fazerem a avaliação das responsabilidades e desafios em matéria de retorno medidos em quilómetros e metros cúbicos, sem noção da complexidade dos processos de retorno, assim como a subestimarem o trabalho que o SEF exercia com brio e muita competência informada na área da investigação criminal de crimes de tráfico de seres humanos e auxílio à imigração ilegal, comparando esses inquéritos com os que as esquadras registam semanalmente em matéria, imaginamos, de crimes rodoviários, pequenos furtos e outras bagatelas penais. Para além, e para concluir, de continuarmos a ler, atónitos, em comunicados oficiais da mesma PSP referência a detenções pela prática de “crime de imigração ilegal”, com uma inadmissível referência, por parte de um órgão de polícia criminal, a um tipo de crime, naturalmente, inexistente.
No que respeita à área documental, já muito foi dito e escrito sobre a incapacidade e impreparação da AIMA para dar resposta aos desafios que exige uma gestão da imigração equilibrada, adequada, célere e competente. Pelo que nos abstemos de reiterar as nossas críticas ao modelo instituído.
Mas, quando pensávamos que nada poderia piorar nesta matéria, e pensávamos que tudo estava “sob controlo” na área da responsabilidade da GNR (como proclamam os seus Oficiais de serviço), eis que surgem notícias sobre uma “mega operação da PJ contra a exploração, maus tratos e extorsão de imigrantes no Alentejo, em que foram hoje detidas 17 pessoas, 11 das quais pertencentes a forças de segurança”, 10 da GNR, alguns dos quais oficiais, e um elemento da PSP.
Os factos indiciados, a crer nas notícias publicadas ontem, são de tal gravidade, no contexto em que foram praticados e por quem atualmente detém responsabilidades acrescidas no exercício da autoridade do Estado em matéria de controlo e gestão da imigração, que realçam ainda mais, se tal era possível, o erro da extinção do SEF, a tal “polícia de imigração ” desumana e que não fazia falta.
Se há uns tempos atrás nos dissessem que era possível que as coisas em matéria de imigração ficassem ainda pior, seria difícil acreditar. Hoje sabemos que não e apetece-nos praguejar: Porra! Foi para isto que extinguiram o SEF? Foi para isto que quiseram as competências do SEF?
É ainda de estranhar que nas inúmeras e contínuas notícias e comentários ninguém se lembre também de fazer estas perguntas. Será sistémico este avesso à verdade?
É o mundo virado do avesso.
Fontes externas:
PJ – Operação “Safra Justa”: PJ desmantela organização
DCIAP – Operação “SAFRA JUSTA”
GNR – Comunicado – Operação “Safra Justa”
MAI – Ministra considera que instituições funcionaram na operação “Safra Justa”
SIC NOTÍCIAS – “Safra Justa”: rede criminosa controlava 500 imigrantes no Alentejo mas nem todos eram vítimas de tráfico
RTP – “Safra Justa”. Detidos em operação contra tráfico de pessoas presentes a tribunal
RTP – Arrancam amanhã os interrogatórios aos detidos da operação “Safra Justa”
Associação Para Memória Futura PMFSEF | 26 Novembro 2025

