J. A. Mendes Lopes | 08 novembro 2023
Comigo, foi assim:
A única fonte consultada para este testemunho foi a memória da testemunha. Cabe-lhe a responsabilidade por todos os erros. A correcção caberá às memórias mais frescas e fiáveis.
A Entrada
Cheguei ao SEF em 1989 vindo da PJ em regime de requisição. A Direcção do SEF procurava reforços para a reestruturação do Serviço, que tinha em mãos, e eu precisava de mudar de ares: já levava mais de doze anos na PJ e estava a ficar farto.
Nos primeiros tempos enfronhei-me nos regimes jurídicos e nas tecnicidades dos estrangeiros, da imigração, dos vistos, dos asilos, dos passaportes, das autorizações de residência – todo um mundo que, até então, nem suspeitava que existia.
A par desta autoformação fui sondando o ambiente. Gente da PSP, uns com empenhos que os tinham tirado das patrulhas e dos turnos e sentado a uma secretária das 9 às 5; outros, via-se logo, tinham-se querido ver livres deles nos lugares de origem.
Predominavam as mulheres e havia bolsas de balzaquianas serôdias que ostentavam orgulhosamente os diminutivos patuscos das “tias” – as tuchas, xinocas e quejandas – que o Herman José estava a levar aos píncaros do ridículo. De um modo geral eram familiares de militares, que também predominavam. Aliás, Serviço de Estrangeiros e, depois, SEF, cumpriam à época, a par de muitos outros serviços da Administração Pública (AP), a função de acantonar os excedentes criados pelo redimensionamento do dispositivo militar, que o fim da guerra do ultramar impusera. E, claro, dando seguimento a uma tradição estadonovense muito arreigada, trataram de encaixar as mulheres, as filhas e as amigas.
Também havia Dótores e Dótoras. Lambiam papel, cultivavam as fórmulas canónicas do linguajar burocrático – “Ouso sugerir…”, “Salvo melhor douta opinião…”, “Levo ao
conhecimento de V. Exa. …”, “Para os fins convenientes”, etc… – Neste último caso, se alguém lhes perguntasse que fins eram esses, é provável que ficasse sem resposta. E eram muitos os conteúdos funcionais que poderiam ser facilmente desempenhados por um carimbo.
Os números dos pedidos de asilo eram ínfimos, o que não impedia a existência de uma Divisão de Asilo. E foi por aí que comecei o meu tirocínio. Estava colocado na Direcção de Serviço de Estrangeiros que, além da Divisão de Asilo, integrava a Divisão de Estrangeiros e a Divisão de Investigação. A Divisão de Estrangeiros articulava-se com o MNE no tortuoso processo de emissão de vistos – tortuoso em vez de kafkiano, porque a imaginação do pobre do Franz não alcançaria aberrações burocráticas daquele jaez. A Divisão de Investigação, nunca consegui perceber o que é que fazia, o que é que investigava.
Durante uns meses, quando surgia um pedido de asilo, cabia-me entrevistar o requerente. Não foram muitos, talvez uns vinte, e não consegui conhecer nenhum refugiado autêntico, alguém que preenchesse os requisitos do respectivo estatuto. Conheci um homicida romeno que tinha morto duas ou três pessoas, outro foragido não me lembro de quê e, claro, desgraçados que tentavam a sorte contando as milongas que corriam no meio da clandestinidade imigratória. Também conheci umas pessoas que trabalhavam na delegação de Lisboa de uma agência internacional que operava nesta área e que, face à escassez de pedidos de asilo, estaria para ser encerrada e a sua missão passar a ser exercida pela delegação de Madrid. Um barco em rota para o norte da Europa tinha clandestinos a bordo e preparava-se para os repatriar a partir de Lisboa. Mas essas pessoas conseguiram chegar à fala com os clandestinos, aconselhá-los a pedirem asilo e instruí-los sobre a melhor maneira de o fazer. Ganharam todos: o armador que não teve a despesa dos repatriamentos, os tripulantes que não foram para onde não queriam e os funcionários da agência que, graças a este súbito recrudescimento de casos, conseguiram reverter a intenção de a fechar. Ninguém reparou em quem perdeu para todos.
A certa altura foi-me confiada nova tarefa: averiguar umas situações esquisitas que vinham a ser detectadas em processos de emissão de autorizações de residência (ARs). Eram, então, uns documentos tão falhos de segurança, tão mal-amanhados tipograficamente, que houve falsificações detectadas por a qualidade tipográfica dos falsos ser superior à dos autênticos. Havia, assim, no muito activo mercado das falsificações, a par da moeda (esta um bocadinho mais sofisticada), dos BIs, dos passaportes, dos cartões disto e daquilo, dos bilhetes para o futebol, o segmento ARs. que fornecia um consumidor menos exigente. O consumidor mais exigente, para reduzir as chatices de poder ser detectado, recorria a falsificações produzidas no próprio Serviço de Estrangeiros e Fronteiras: o documento era autêntico, o processo de emissão é que era fraudulento. Mais caras, como não podia deixar de ser, mas outra louça.
Não há muito a dizer. Três responsáveis regionais foram detidos e responsabilizados disciplinar e criminalmente, sem necessidade de grandes meios nem grandes diligências. Era “cada cavadela, cada minhoca”, tal a bandalheira em que estava a organização do Serviço. O sentimento de impunidade era tal, que um dos arguidos não teve pejo em receber 300 contos (segundo a Pordata serão hoje €3 766) pela emissão de uma AR, em cheque ao portador, e foi levantá-los ao balcão do banco, assinou o verso do cheque e identificou-se com o BI profissional. Investigar assim foi fácil. De tal maneira que me gabarolei ao contrário, no relatório final de um dos processos, escrevendo que os resultados obtidos não eram mérito da investigação mas sim do desnorte organizacional que, se facilitava a vida aos prevaricadores, também lhes revelava as pegadas. Só as não via quem não queria (chatices).
Conheci um velho carteirista que, já reformado, me confessou um dia, entre duas ginginhas: “Olhe que me chegou a acontecer, mais que uma vez, ter o dia feito, ir para casa descansadinho e, no metro, um otário com a carteira a saltar do bolso de trás das calças, ou uma garina com a bolsa escancarada e as vintenas a rirem-se para mim. Um homem não é de ferro e … lá ia mais uma”. Imagino que tenha sido – e, infelizmente, continue a ser – deste género o drama vivido por muitos na AP. Se calhar até nem queriam (querem), mas era (é) tão fácil e estava (está) ali tão à mão.
Foi este o SEF que encontrei. Bafiento, abandalhado, tosco. Ainda a tresandar a Estado Novo: o SEF Velho.
Mas não se pense que era alguma abencerragem. Não senhor; mais coisa menos coisa estava perfeitamente alinhado com o padrão maioritariamente vigente na nossa AP dos fins dos anos 80.
A CIF
Entretanto, abriu o concurso e começaram as provas de selecção para o 1º Curso da Carreira de Investigação e Fiscalização e tive o privilégio de assistir e participar no que me atrevo a designar como a operação de reengenharia organizacional mais arrojada, face ao contexto e aos meios disponíveis, alguma vez levada a cabo nossa AP. Quem a liderou, não se atemorizou por não ter cão. Caçou com gatos que nem sabiam bem o que eram ratos, quanto mais lebres. Não que fossem destituídos, mas porque não era aquele o mundo funcional deles.
O grosso das provas de selecção foi feito por entidades externas. Mas era preciso envolver o SEF Velho com o SEF que iria nascer, pelo que foram constituídos júris para entrevistar os candidatos. Ainda hoje, tantos anos depois, correm as evocações de perguntas que foram então feitas e ficaram célebres por não terem nada a ver com o que seria de avaliar em quem se candidatava ao exercício de funções daquela natureza.
Também fui candidato e fiz todo o percurso da selecção. Depois, conhecemo-nos, o 1º Curso, na universidade do poço do bispo, que entremeávamos com a do barro e duas idas por semana ao estádio 1º de maio, onde desanuviávamos a aprender a desviarmo-nos de estaladas e a manter a forma física em corridas em que competíamos com umas galinholas que frequentavam o parque. Explicando melhor: a universidade do poço do bispo eram as instalações da Fábrica (de material de guerra) de Braço de Prata (aqui, embora já nada exista) entidade com quem fora celebrado um protocolo para cedência dos espaços destinados à formação e a do barro a Escola da PJ, onde outro protocolo nos facultou a formação nas áreas mais técnico-policiais.
Foram seis meses de formação teórica. Duas turmas de inspectores e cinco de inspectores-adjuntos. Um corpo docente com alguma prata da casa (mais uma vez a preocupação de entrosar o Velho SEF com o que estava em gestação) professores provindos da Universidade, das Magistraturas, palestras e seminários de peritos estrangeiros, tudo isto preenchendo um horário médio de 6/7 horas diárias, cinco dias por semana. Ninguém se pode queixar da qualidade da formação recebida.
Seguiram-se três meses de Estágio, em regime de Exercício Tutelado de Funções, e, aí, voltou a observar-se o que já se vira nas entrevistas de selecção: o que se pretendia viessem a ser os modus operandi e faciendi do Novo SEF eram completamente estranhos ao Velho SEF. Os orientadores de estágio bem se afadigavam em orientar os formandos, mas eram patentes as dificuldades que tinham com a bússola e as cartas.
O que terá contribuído para nos dar uma visão do que seria o controlo de uma fronteira foram as sessões de “observação” da actividade de quem então se ocupava de tal tarefa no aeroporto de Lisboa: os elementos da Guarda Fiscal.
A formação terminou com um jantar de estalo no Restaurante Panorâmico do Monsanto (outro lugar que já não existe; passei por lá há tempos, tudo destruído, um dó de alma).
Recordo as nossas colegas todas janotas – janotas estávamos todos, mas elas janotavam mais, como não poderia deixar de ser – a vista deslumbrante, o jantar muito bem servido, e o despontar do espírito que iria ser o agregador da Comunidade SEF durante mais de trinta anos.
O PF001
Foi o batismo de fogo.
Mas ainda tivemos que aboborar até às 00:00H do dia 1 de Agosto (1991), enquanto decorriam os preparativos para o nosso Dia D.
Íamos substituir a GF, a começar no aeroporto de Lisboa. Ia ser este o primeiro embate com a nova realidade, onde iriamos criar traquejo para podermos dar os passos seguintes com mais confiança. E onde iria ser definido, testado e aperfeiçoado o modelo de funcionamento a replicar nos restantes postos de fronteira que iriam ser sucessivamente ocupados pelo SEF.
A GF levava 17 anos de experiência no exercício do controlo do movimento de pessoas nas fronteiras. Recebera a incumbência, um tanto atabalhoadamente, no dia 26 de Abril de 1974, com a extinção da então incumbente Direcção-Geral de Segurança. Dera continuidade ao modelo de funcionamento herdado e não era patente que lhe tivesse mexido muito. A ideia era a de, com o SEF, alterar o modelo e as práticas até então seguidas, mas nesta área do controlo das fronteiras não seria necessário inventar a roda. Haveria, no entanto, que nivelar-lhe o eixo, apertar-lhe os aros e reforçar-lhe o piso. E foi o que foi feito.
Primeiro, o levantamento do que era e como era feito. Depois a análise crítica e a definição do que seria de manter e do que seria de alterar. Depois, a preparação das mudanças a efectuar, que teriam de ir de par com as restantes mudanças, induzidas pela substituição da GF, que iríamos fazer. E quem é que caberia toda esta convulsão? A um grupo cuja média de idades estava longe de atingir os 30 anos, a experiência era nenhuma, uma grande parte estava a entrar no primeiro emprego e não podiam contar com o esteio de uma organização ou de uma cultura organizacional. Havia alguns mais velhos, provindos de outras áreas da AP, com alguma experiência, mas não naquilo que iríamos começar a fazer a 1 de Agosto. Nisso, comungávamos o grau de inexperiência e a apreensão pelos riscos que estávamos a assumir. Apenas nos distinguíamos por uns disfarçarem melhor que outros.
Eu era dos mais velhos, trabalhava desde os 14 e tinha feito um pouco de tudo. Mas, aquele quadro atemorizou-me pelo grau de incerteza, pela corda bamba que era. Lembrava-me que, quando íamos para o Ultramar, também eram três meses de recruta, outros três de especialidade, mais uns pozinhos e… ala! Mas havia toda uma máquina rodada e oleada a apoiar e o enquadramento de gajos que já tinham pelo menos uma comissão em cima do pêlo. Na PJ, o mesmo: a máquina estava mais que rodada, havia os mais velhos. Aqui, os mais velhos eram tão maçaricos como os propriamente ditos.
Mas lá fomos. Foi redefinida a organização e introduzida uma estrutura de responsabilização – Inspectores de Turno, Responsáveis de Área; foi gerido o quebra-cabeças da definição dos horários de turnos, que distribuíssem equitativamente a penosidade, garantissem o direito a folgas e descanso e ainda foi tentado um círculo quadrado adequando o número de efectivos aos picos de movimento de partidas e chegadas; foram criados suportes documentais – os Relatórios de Turno, os Relatórios de Ocorrência; e até acho que também foi criada a nomenclatura dos postos de fronteiras: os PFXXX com o primeiro digito alocado ao tipo – aérea, marítima e terrestre, mas só me lembro do zero para o primeiro.
Na manhã de 31 de Julho, reunião no refeitório do edifício da Luz para os preparativos finais da operação que iria começar nessa noite, e para onde fomos com umas fardas de inverno, em lã, que, por muitos anos que o SEF tivesse durado, nunca seriam os suficientes para agradecermos aos Serviços Administrativos e de Apoio Geral o apoio e conforto que nos proporcionaram naquela fase inicial e difícil da CIF.
Nessa altura já conhecia alguma AP, e vim a conhecer muita mais. Assisti a transições em gabinetes ministeriais em que uma certa acrimónia política implicou que não houvesse qualquer contacto pessoal. Mas estavam lá os documentos essenciais, o mobiliário e a estrutura de apoio do Gabinete. As rendições de guarnições militares, embora se traduzissem numa rotação completa dos efectivos, eram feitas com períodos de sobreposição. Uma coisa daquelas é que nunca tinha visto nem voltei a ver: à meia-noite, uns apertos de mão protocolares, quem estava de saída foi à sua vida e nós, com os nossos impressos nunca usados, a nossa organização nunca testada, a nossa inexperiência a suar nas garbosas fardas acabadas de estrear, ocupámos as instalações do posto de fronteira do aeroporto de Lisboa, vazias, à excepção de uma ou outra barata, e começámos a controlar o movimento de pessoas na fronteira aérea mais importante do país.
Nascia o SEF Novo. Um parto difícil: de cesariana – e sem epidural.
Os primeiros tempos
Preocupava-me a verdura daquela miudagem, mas foi amplamente superada por um entusiasmo, um empenho, um denodo – em suma: um espírito empreendedor – que de
imediato me conquistaram, embora só agora o assuma e, mesmo assim, fazendo questão de separar deste trigo o joio que também houve. Não fora tal espírito e tudo teria sido ainda mais difícil, se não impossível.
Não tardou a começarmos a sentir os ricochetes do novo estilo. Havia figuras públicas que estavam habituadas a passar o controlo de fronteira com um aceno, correspondido com uma vénia e estranharam que agora lhes pedissem o passaporte. Um deles, jornalista de renome, muito enxofrado, usou uma crónica para desabafar e alertar para o que lhe parecia ser o renascer de métodos pidescos.
Os clubes de futebol, que na altura iam buscar reforços, muito em conta, ao mercado do leste europeu, estranharam que as vedetes que chegavam tivessem de perder tempo a responder a perguntas e a mostrar papéis enquanto a imprensa e os dirigentes se impacientavam à espera. Manifestaram o seu desagrado, chamando até a atenção para as certeiras palavras de fulano na sua crónica. E, quando, pela primeira vez, foi recusada a entrada a uma dessas vedetas, caiu o carmo e a trindade.
As operações de terra das companhias aéreas também não estavam muito habituadas a terem de se preocupar com problemas nos controles de fronteira que bulissem com o trabalho deles. Quando surgiram, estranharam e também reagiram.
Mas, as coisas lá foram entrando nos eixos, as novidades tornaram-se rotinas e os intrusos dessa-coisa-nova-que-para-aí-veio começaram a ser vistos com outros olhos, mesmo quando olhados de esguelha.
Nunca estive na primeira linha do controlo, na box. Mas a observação do que lá acontecia convenceu-me de que se trata de uma arte, assente no domínio de várias disciplinas técnicas, que se vai desenvolvendo com o tacto, a empatia e a sensibilidade do controlador, e sei dos muitos “artistas” que foram surgindo. Porém, naqueles primeiros tempos em que os “artistas” ainda estavam a germinar, tínhamos a grande ajuda de um vade mecum que nos habilitava com um lote de dez questões sobre cada país, pensadas para despistar falsas assunções de nacionalidades. Por exemplo, quem se apresenta com um passaporte português terá de (ou,agora, deveria ter de) saber responder a: qual é a capital de Portugal, a serra mais alta, as comidas mais apreciadas, o nome da província mais a sul, etc., etc. Assim, a suspeita sobre se quem exibia determinado passaporte era o seu verdadeiro titular, foi algumas vezes resolvida com recurso à respectiva página deste vade mecum. Outras, bastava dizer bonjour a quem exibia um passaporte francês e ver a expressão interrogativa do interlocutor. Métodos primitivos para estratagemas primitivos que, imagino, tenham, uns e outros, evoluído.
Também aprendemos que controlar fronteiras é mais que verificar a autenticidade do documento de viagem e do vínculo que tenha com o portador quando, num voo proveniente
de um país nórdico, umas quantas turistas, já entradotas, que terão combatido o tédio da viagem treinando os tintos com que se iriam confrontar nas férias, ressentiram-se da
descompressão, houve desmaios na zona do controlo de entradas e uma delas entrou em coma alcoólico.
E a “Operação-Fiasco” ensinou-nos a não ser garganeiros e não darmos passos maiores que as curtas pernas que tínhamos. Há muito que havia indícios de um esquema manhoso, que passava pela utilização do regime especial para o trânsito de marítimos nos portos de escala, para introduzir clandestinos. Foi detectada uma situação – quatro ou cinco paquistaneses que iriam embarcar num navio que haveria de chegar uns dias depois a Lisboa – e decidimo-nos por uma abordagem proactiva, e holística até (embora estes palavrões ainda não estivessem na moda): deixá-los entrar, com uma operação de vigilância e seguimento montada, localizar e identificar a rede de apoio, desmantelá-la e erradicar o problema de vez.
Foi quase assim. Saíram do aeroporto debaixo de olho das equipas de vigilância, instalaram-se num pequeno hotel onde tinham uma reserva em nome de um deles. Não contactaram com ninguém e saíram a dar um passeio. Nos Restauradores entraram numa loja e as equipas no terreno montaram o dispositivo de vigilância conforme as “lege artis” ainda fresquinhas. Ou já um bocadinho requentadas, porque a loja tinha uma saída para a Travessa de Santo Antão e os vigiados nunca mais saíam por onde entraram e nunca mais foram vistos.
A guerra da altura, a da Jugoslávia, que tinha começado há pouco, deu-nos a conhecer verdadeiros refugiados. Uma ONG alemã tinha resgatado para cima de trezentos homens velhos, mulheres e crianças que estavam a ser transportadas de barco para a Alemanha. O barco estava em tão mau estado que teve que aportar a Lisboa e as autoridades marítimas não o deixaram prosseguir viagem. Mas também não podia largar a “carga” porque aquela pobre gente nem documentos de identificação teria, quanto mais de viagem. Barco sem poder acostar, a comunicação social preocupadíssima, as razões humanitárias. Um “bico d’obra”, com que levámos um belo dia ao princípio da tarde, mas estava resolvido pouco mais de 24 horas depois, para grande consternação do circo mediático que, entretanto, já tinha sido montado com anúncios destes: “burocracia do nóvel Serviço de Estrangeiros e Fonteiras (ninguém dizia SEF, na altura) impede apoio a refugiados”, “refugiados em condições desumanas em barco a meter água (estivemos lá e o máximo que se podia dizer das condições de alojamento era o serem sofríveis e a segurança estava garantida).
Graças ao inexcedível empenho da ONG, do agente do armador e das autoridades alemãs, foi fretado um avião, autocarros, inventada uma ficção jurídica de extensão da zona internacional, delimitada uma zona no cais da Rocha de Conde d’Óbidos com efectivos da P.S.P. para manter os jornalistas à distância enquanto o barco acostava, os passageiros desciam e entravam nos autocarros, que seguiram em coluna, escoltados, para o aeroporto.
Guardo na memória os olhares tristes que vi quando de noite fui ao barco. E a sanha com que os autocarros, já pontos a partir, foram assaltados pelas gentes da comunicação, que romperam o cordão policial que garantia a delimitação da zona de trânsito improvisada. As correrias, os atropelos entre eles, pendurados nos autocarros, a berrarem lá para dentro, os olhares, agora além de tristes atónitos, dos refugiados. Que bela reportagem não teria dado aquela cena de como se faz a informação-espectáculo.
Os Sectores da Divisão de Investigação
O controlo e a fiscalização já estavam a andar. Faltava a valência investigação.
Estava em curso o processo legislativo conducente à tipificação do crime de auxílio à imigração ilegal e o SEF seria Órgão de Polícia Criminal competente para a sua investigação. A orgânica existente não tinha capacidade para corresponder ao que esta competência iria exigir. Como solução de recurso, foi criada, por despacho do Director-Geral, na Divisão de Investigação uma estrutura ad hoc que compreendia três sectores:
– um, de análise documental, visando o desenvolvimento da capacidade técnica capaz de apoiar a detecção de fraudes documentais e produzir os relatórios de prova pericial que as situações tratadas em sede de processo penal exigissem. Ficou instalado no PF001, em instalações onde foram improvisados alguns requisitos técnicos e montado o equipamento disponível. A equipa (muita reduzida) que o integrou foi acumulando experiência, expertise e, de todo o muito que fez e foi, há quem possa testemunhar com muito mais autoridade que eu;
– outro, de tratamento e difusão de informação, também instalado no PF001 e destinado a garantir a gestão dos ficheiros de medidas cautelares (mandados de detenção, captura,
localização, referenciação, interdições de saída, idem de entrada) provenientes dos tribunais nacionais e da Interpol e herdados da GF. Atenção que estes ficheiros não eram os agora vulgares ficheiros informáticos, em formato digital. Eram os etimológicos conjuntos de fichas físicas, em papel. Terão durado até terem sido ultrapassados pelas soluções criadas a nível europeu, nomeadamente o Sistema de Informação Schengen.
– outro ainda, o Central de Investigação. Central porque a ideia era a de que o pessoal fosse nele aprendendo e ganhando traquejo, e depois rodando para departamentos regionais de modo que fosse sendo criada e disseminada uma cultura organizacional mais alinhadas com o que se espera de um corpo de polícia. Acho que foi que foi graças ao empenho de algum do SEF Velho e ao apoio que posteriormente granjeou, que este e outros objectivos que visavam consolidar o SEF Novo não vingaram. Ficou instalado no primeiro andar de um edifício na Flamenga, nos arredores de Lisboa. Instalações adequadas, mas como fomos estrear o edifício tivemos que ser nós a desenrascarmo-nos com tudo o que foi além das instalações e mobiliário porque, quanto a apoio, estávamos esclarecidos desde as fardas.
Integrava 14 elementos. 2 Inspectores; 3 Inspectores-Adjuntos de 1ª classe, responsáveis por cada uma das 3 equipas de investigação; 7 Inspectores-Adjuntos de 2ª classe, distribuídos pelas equipas de investigação (2 em cada) e um afecto ao tratamento de informação e ao apoio logístico. Um elemento da carreira administrativa, destacado da Divisão de Investigação, apoiava nas incipientes aplicações informáticas disponíveis e na área administrativa.
Antes de irmos para a Flamenga com a equipa completa, aproveitámos diligências em processos disciplinares ainda pendentes, nascidos de efeitos colaterais dos raids que 2 anos antes tinham levado à detenção de 3 responsáveis regionais, para ir rotinando alguns elementos nas minudências da instrução processual. Quando começámos na Flamenga adoptámos um modelo próprio de Learning and Training in Job. As primeiras diligências instrutórias eram uma espécie de plenários a que todos assistíamos, e as diligências no terreno implicavam grande planeamento e aprofundados briefings – não quisemos repetir a “Operação Fiasco”, que ainda não tínhamos esquecido. Mas depressa se atingiu a velocidade de cruzeiro, porque o espírito empreendedor daquela rapaziada mantinha-se o do início no PF001. Não tardou começarem a dar cartas e conduzir investigações que atingiram resultados que, tomara alcançarem muitos veteranos, a trabalharem em melhores condições e com melhores meios que os deles.
Foi o caso de um processo de dois chineses que foram detidos no aeroporto de Ponta Delgada quando tentavam embarcar para os Estados Unidos com passaportes falsos. A investigação, mais que a típica reconstituição das circunstâncias da prática de um acto e dos elos que o ligam a quem o praticou, foi todo um processo de reverse engineering que pôs a nú, tanto quanto sabemos pela primeira vez na Europa, os trajectos, modus operandi, pontos de apoio e articulação das “cabeças de cobra” no sector emigração clandestina, da actividade das tríades chinesas.
Muito resumidamente: os dois desgraçados, depois das famílias se terem empenhado para pagarem a primeira tranche das despesas para os porem nos Estados Unidos, onde
começariam por trabalhar o tempo que fosse preciso para pagar o restante, foram levados para Macau onde embarcaram com documentos falsos para um país africano. Aí, depois de alguns dias, embarcaram novamente num voo para a China mas com escala em Frankfurt. No trânsito em Frankfurt são abordados na zona internacional por alguém que lhes troca os documentos de viagem e os bilhetes e os põe num voo para Bilbau (estávamos ainda longe de Schengen). Aqui, são levados para Madrid onde ficam num “entreposto” com muitos outros compatriotas que também aguardavam a continuação da viagem. Vêm para Lisboa no Lusitânia Expresso (também já não existe!). Em Santa Apolónia têm alguém à espera que os leva ao aeroporto, lhes dá bilhetes e novos passaportes e os põe no voo para ponta Delgada. De acordo com as instruções recebidas desembarcaram, fizeram tempo e apresentaram-se para embarcarem num vôo para Boston, exibindo os bilhetes e os passaportes que o professor universitário que os recebera em Lisboa lhes tinha entregado.
Outro processo teve a ver com mutações no mercado da prostituição. Neste início dos anos 90, os grandes do futebol aviavam-se no leste europeu, os grandes da noite de Lisboa e do Porto, no Brasil. Cafetinas locais organizavam catálogos com imagens e dimensões dos produtos, que os empresários aqui usavam para escolher e encomendar. Por vezes havia encomendas de lotes que implicavam uma deslocação para apreciação in loco e, então, avançavam olheiros especializados. Um deles, responsável pela portaria de um dos estabelecimentos compradores, apresentava-se com um cartão de visita que ostentava o cargo de Director de Putaria.
No contrato, uma espécie de leasing adaptado às especificidades do segmento de mercado, o comprador avançava com uma quantia que cobria as despesas do transporte e da documentação do produto e comissão da cafetina. Recebido aquele, a sorte das desgraçadas brasileiras era igual à dos desgraçados chineses que conseguiam chegar à América: eram-lhes retirados os documentos e ficavam a trabalhar até o patrão entender que o seu crédito estava saldado, com os juros que o risco de um investimento daquela natureza justificava, evidentemente.
Tudo isto estava, poucos meses depois de terem começado, a ser investigado e instruído pela
malta do SCI, com um rigor e uma qualidade que sustentaram significativas condenações em
tribunal. Muitos outros casos e processos se seguiram. Mas, aí, já tinha abandonado aquela
malta; com pena, mas descansado por os saber capazes de voar sozinhos. E bem.
O meu pós-SEF
Começou 28 anos antes do 29 de Outubro passado.
Nos fins de 1995, face a alterações que não me agradaram, fiz-me novamente à vida. Ainda fiquei uns tempos pela AP, mas em 2001 fartei-me de vez. Continuei a trabalhar, tendo tido um percurso de vida activa que se estendeu por mais de 50 anos, cerca de metade na AP, dos quais 5 ou 6 no SEF. Mas, assumo-o sem pejo: a passagem pelo SEF foi dos mais marcantes períodos na minha vida. Foi a minha Estrada de Damasco.
Como já referi, quando cheguei ao SEF já tinha cerca de 12 anos de AP. Se lhe juntarmos os 3 e tal da tropa, há 15 anos que estava por dentro da máquina administrativa do Estado. Mas não sabia nada dela. O ritmo da actividade policial não me deixava ver onde estava metido. Ia-me dando conta de coisas que me pareciam esquisitas, comportamentos estranhos, procedimentos absurdos, mas atribuía tudo isto à minha incapacidade para os entender – deveria haver alguma razão de fundo que me escapava. De tal modo que, para tentar perceber a lógica que presidiria àquele mundo onde predominavam os juristas, ao fim de uns 3 ou 4 anos de estar na PJ resolvi estudar direito. Em 1985 estava licenciado no dito, mas para o que pretendia de pouco me valeu.
Foi a mudança de ponto de vista, face à realidade da AP, que iniciei no SEF e prossegui no resto da AP por onde ainda passei, que me permitiu começar a perceber muito do que até aí não entendia e a questionar princípios sociais, políticos e filosóficos assentes em ideologias que até então muito prezava e que, no essencial, remetem para uma visão estatista da sociedade. Ou seja: foi o ver a máquina da AP a funcionar e o começar a compreender porque é que funcionava tão mal que matou o socialista que havia em mim.
Não é tarefa fácil procurar as “causas da decadência da nossa AP”. Encontra-se um terreno minado por interesses – legítimos e ilegítimos, corporativos, partidários, empresariais,
sectoriais, de sociedades secretas e discretas – em que cada grupo pugna pelo seu quinhão de interesses e não se sente responsável por nada do que está mal; a culpa cabe toda aos outros. Por isso são matérias difíceis de abordar e as posições que agora tenho relativamente a elas serão, porventura, tidas por heréticas no entendimento dominante no actual contexto. Mas, à laia de moral – ou de learned lessons, que é mais modernaço – desta história onde fomos personagens, deixem-me tocar, mesmo que ao de leve, em dois temas, que vejo interligados: a corrupção e a gestão.
O primeiro,
A corrupção é endémica na AP. Antes dos casos que referi no SEF, nos anos 70 já tinha estado envolvido na detenção de colegas da PJ. Uns porque impediam que retornados vendessem clandestinamente os diamantes com que tinham fugido de Angola apreendendo-lhos, mas esqueciam-se de elaborar o auto de notícia e dar andamento ao processo. Outros porque voltavam a pôr em circulação droga apreendida. E estive ainda envolvido, não na detenção, mas na recolha de prova que levou à expulsão da magistratura de um Juiz que alinhava as suas decisões com os interesses de uns compinchas de pândega, que não o deixavam entrar na divisão de contas das noites de farra e até o apresentaram a umas moças que o convenceram que nunca tinham conhecido um homem como ele.
Depois do SEF ainda vi muito pior que isto. E, para além da corrupção “à séria”, a que mete dinheiro ou pagamento em espécie de um lado e a prática de um acto, administrativo ou judicial, do outro, temos ainda o empenho, o favor, o jeitinho, a cunha, o veja-me lá isso e enchia dez apensos de histórias a contar o que vi, duns e doutros. E há muita gente a desvalorizar estas coisas, a dizer que são traços culturais, que é típico dos meridionais e que é corrupção de peanuts; que a corrupção que nos deve preocupar é a do topo e não a da base. Tenho para mim que, sem a segunda, a primeira pode não ser impossível, mas é muito mais difícil.
Claro que há situações particulares que tornam difícil detectar os indícios de práticas corruptas. É matéria que dá pano para mangas, pode ter imensas variantes e longe de mim estar aqui a querer impingir soluções, ou explicações, fáceis para problemas complicados. Há para aí quem o faça muito melhor que eu. Mas, ficando-nos apenas pelos casos que contei, o do fulano que gamava os diamantes só foi topado porque à 4ª ou 5ª operação a coisa deu para o torto. Ele também era retornado, conhecia o meio, tudo aquilo era clandestino, pelo que ninguém abria a bico.
Já os rapazes que reutilizavam a droga apreendida, faziam-no porque aquilo era uma bandalheira pegada. E o mesmo com os que vendiam AR’s. E, se pensarmos um bocadinho, damo-nos conta que ases da trafulhice há de haver em todo o lado; a trafulhice não é um gene exclusivo do funcionário público. Então, porque será que a corrupção abunda na AP, seja ela central, regional ou local, e não se dá conta dela nos grandes universos empresariais? Será por serem diferentes a organização, o escrutínio, a responsabilização, os estímulos? Fiquemo-nos por aqui, que reconheço pouco, esparso e contestável, mas que creio que dará que pensar a qualquer funcionário já com uns anitos em cima, que seja honesto e que também não ache muita piada a muito do que vê, e passemos ao outro tema.
O segundo,
A gestão é uma lástima na AP. Não há uma causa, há concausas. Mas, o peso excessivo da cultura jurídica justifica muitas das disfuncionalidades que apresenta.
Também aqui há razões históricas, culturais e, até, de patamar de desenvolvimento para este excesso. Mas, como tenho de encurtar razões, irei por este atalho. Não há baiuca da AP que não tenha um Gabinete Jurídico e serão poucos os responsáveis de baiuca que decidam alguma coisa sem o prévio parecer desses gabinetes. Ora, o pensamento jurídico é frequentemente conflituante com o pensamento gestionário, porque se gerir é alocar meios, normalmente escassos, antecipar eventos, alcançar objectivos, avaliar juridicamente é apurar a conformidade de todas estas acções com o quadro normativo, que pode estar desfasado da realidade, ter lacunas ou ser caótico. Ou, pior ainda, ser interpretado por quem sacraliza a norma e a vê como capaz de alterar a realidade.
Mas a (excessiva) influência da cultura jurídica não se fica pelos pareceres dos gabinetes. Acho que continuam a predominar, nos diversos níveis, os dirigentes apenas com formação jurídica. E tais dirigentes, se a vida não lhes ensinou mais nada ou não tiveram uma formação complementar, não será com o que aprenderam na Faculdade de Direito que conseguirão gerir seja o que for. Porque o que aprenderam foi “Law in books” e o que a dinâmica das organizações exige é “Law in action”
Longe de mim pretender que ser jurista, na área da gestão, pública ou privada, seja uma capitio diminutio. Não, nada disso. Apenas gostava que não fosse, como há décadas vem sendo, indevidamente e com resultados desastrosos, uma capitio augmentatio.
Epílogo
Como não podia deixar de ser, a vida afastou-nos. Ia sabendo do SEF pelo que aparecia na comunicação social e foi também na comunicação social que pus o meu desabafo quando lhe vi a sentença de morte.
De há uns anos a esta parte, a malta pioneira do SCI começou a organizar umas jantaradas anuais e era aí que tinha o prazer de rever e abraçar aqueles amigos. Mas foi num almoço onde estava malta para além da do SCI, que me vi envolvido num projecto a contrarrelógio para preservar a memória da Comunidade SEF.
Em boa hora. Foi gratificante – rejuvenescente, até – reencontrar o espírito empreendedor daqueles miúdos, agora todos já bem para lá dos 50. E se há quem proclame “Não te deixarei morrer David Crockett” nós empenhar-nos-emos em não deixar morrer a memória da Comunidade SEF.
Veremos por quanto tempo.