ARTE E FRONTEIRAS

1. Numa leitura apressada, o título desta crónica pode afigurar-se esdrúxulo.
De facto, Arte e Fronteiras parecem, à primeira vista, conceitos desirmanados, mais destoantes do que alhos e bugalhos e tão difíceis de emparelhar como o azeite e a água.
À primeira vista, as fronteiras, e em particular as fronteiras terrestres, traçadas ao longo de paisagens inóspitas e desiguais – colinas e planícies, serras e vales, penhascos e desfiladeiros, rios caudalosos e bucólicos regatos, bosques e descampados – não parecem constituir palco propício para manifestações artísticas, nem habitat adequado a pintores, músicos ou escultores.
Os únicos artefactos humanos, aliás sem pretensões estéticas, que ali podemos descortinar, são os chamados “marcos” fronteiriços, ou “padrões”, pequenos pilares ou obeliscos, em granito ou betão, que sinalizam o limite da linha de fronteira terrestre ou a mudança de direção dessa linha.
Entre nós, ao longo dos 1319 quilómetros que, pela raia luso-espanhola, separam a foz do rio Minho da foz do rio Guadiana, contam-se 5211 desses paralelepípedos numerados, formando uma teia que contorna o norte e o leste de Portugal continental.
Pequenos monólitos desta natureza demarcam as fronteiras terrestres da generalidade dos países, embora com nomes diferentes (boundary stones, grenzstein, mojones, borne frontière…).
Têm como único propósito a demarcação do território, uma afirmação de soberania, expressão de autoridade e balizamento de jurisdição.
2. Há no entanto, embora relativamente raros, monumentos construídos sobre a linha de fronteira, ou em espaço contíguo, que revelam outra – e mais elaborada – preocupação estética e assumem propósitos evocativos, como a glorificação de um episódico bélico ocorrido na região fronteiriça (que é, historicamente, cenário de inúmeras disputas militares-territoriais) ou a celebração da amizade entre países vizinhos. Exemplo deste último caso é o “Peace Arch”, o Arco da Paz, monumento em estilo neoclássico, com cerca de 20 metros de altura, erguido em 1921 na linha de fronteira do Canadá (Surrey) com os Estados Unidos (Blaine).
3. Características únicas são, porém, as da monumental obra de arte cuja imagem ilustra a presente crónica. Trata-se de uma instalação transfronteiriça, com início no território de um país e termo no território do país vizinho.
O autor é o artista plástico polaco Jaroslaw Koziara, que imaginou (e materializou) dois gigantescos peixes, cada um deles cruzando (não apenas simbólica mas também fisicamente), cada um no seu sentido, a fronteira entre Polónia (Horodyszcze) e Ucrânia (Warez).
Esta obra, localizada na interseção de dois campos adjacentes à fronteira, inscreve-se na chamada “Land Art”, movimento surgido no final da década de 1960, que se diferencia pelo facto de os artistas usarem a própria paisagem como tela e matéria-prima, modelando-a de forma a criarem intervenções de grande escala, embora efémeras: a própria natureza acaba por destruí-las, recuperando paulatinamente os sulcos e rasgos nela abertos. Este enorme par de peixes, criados a partir de 23 diferentes tipos de plantas semeadas em ambos os lados da fronteira entre a Polónia e a Ucrânia, não sobreviveu muito tempo após ter sido apresentado no verão de 2011. A sua memória é unicamente preservada em fotografias aéreas, filmes e mapas.
Entre outras motivações, o movimento “Land Art” pretende romper com a noção de arte confinada a museus e galerias, desviando-a para campo aberto. Para quem se interesse por conhecer melhor este projecto, e o seu autor, recomendo o link https://www.youtube.com/watch?v=s2YPMBEHzH8
4. Nestas obras, cuja desmedida dimensão recomenda que sejam apreciadas à distância, em visão panorâmica e a partir do alto, são geralmente reconhecíveis intenções ambientalistas e fortes elementos de crítica social.
A escolha dos peixes, como protagonistas da obra, decorre do seu valor simbólico. Tal como a cultura, a natureza supera silenciosamente as linhas geopolíticas: num qualquer curso de água internacional, os peixes transitam desembaraçadamente de um para outro país. Da mesma forma, há um fluxo permanente (social, económico, cultural) entre comunidades raianas confinantes de ambos os países (Ucrânia e Polónia, no caso em apreço), que interagem e convivem pacificamente, num secular e solidário entendimento que nada (nem sequer uma fronteira) pode ou deve estorvar. Ou não fosse o destino das fronteiras separar, mas também unir.
Zépestana | 09 dez 2025