Querido companheiro de vida,
Quando avisaste que andavas á à procura de pessoas para fazerem uma série de coisas
que desconhecia por completo, não te conhecia de lado nenhum…
Tinhas morada em Lisboa, e eu, por sorte, a quinhentos quilómetros de distância tinha
acesso ao Diário da República, única rede social que na época publicitava
oportunidades de vida…
Disse-te: Tá bem, pode ser…tinha mais da altura e menos do peso que impunhas, os
estudos á à tangente e das línguas estrangeiras que exigias dominava o francês…alors
porquoi pas? Allons-y que o inglês aprende-se em três penadas…
Confesso-te agora que tiveste sorte…e que não foram as tuas oferendas que me
trouxeram até ti, mas sim o facto de outras esperanças já se passearem nas ruas do
Chiado…
Enfim, vim, ensinaste-me coisas inconcebíveis tendo em conta a minha intrínseca
ruralidade transmontana e disseste-me: tás pronto, podes começar…ao mesmo tempo
que indiferente ao pico do verão, me entregaste um casaco e dois pares de calças de
inverno, acompanhados de umas camisas que a goma teimava em não deixar dobrar…
E comecei…
Com ansiedade, com determinação, com confusão, com uns primos teus a dizerem-me
que tinha que examinar dois ou três papeis, ao mesmo tempo que radiografava com o
olhar quem mos entregava e com o casaco, as calças e a camisa a amplificarem-me o
desconforto ao mesmo tempo que distribuía thankios, mercis, gracias e afins…
Confesso-te também outra coisa, apesar da inapropriada vestimenta que me
ofereceste, mantive-me ao teu lado, quando outros teus primos me acenaram com
análogos fadários e a possibilidade de vestir o que quisesse…
O tempo foi passando, a goma das camisas desistindo, as calças e o casaco a
agasalharem manhãs, tardes e noites…até ao dia em que te deu a mania das grandezas
e quiseste mostrar o teu savoir faire aos primos que podiam vestir a roupa que
quisessem …
Disseste-me: anda…vem experimentar…e fui…e ensinaste-me outra vez… e fiquei
nessa tua outra dimensão de aborreceres as pessoas que não concordavam assim
tanto com uma série de normas reguladoras do bem comum e do respeito pela
dignidade dos outros…
E nessa nobre incumbência continuei a despender outras manhãs, tarde e noites,
muitas das vezes a olhar e a não ver, a ouvir e a não perceber, as lides e as conversas
dos outros…até ao dia em que a persistência traçou o fadário a um chinês e em Boa
Hora o compeliu a prestar explicações ali para os lados da Baixa Chiado…
Se me permites, deixa-me ficar essa consolação de considerar muito minha essa
primeira vitória, partilhada com alguns outros que também te elegeram para
caminharmos juntos…
E a seguir ao chinês, outros se seguiram, de línguas e latitudes diferentes, incluindo o
português de Camões…
E o tempo foi passando, cimentamos cumplicidades, tu como protagonista e eu a
maior parte das vezes como figurante e muitas outras como actor secundário…
Um dia, em conjunto com a frase ”É a tua cara…assenta em ti que nem uma luva…”
deste-me uma Unidade, prenda essa que apesar de não ser filha de pais incógnitos,
nunca conseguiu da tua parte obter os “papeis” ou a regularização que ironicamente
exigias aos outros…
A talhe de foice, permite-me dizer-te que tal oferenda apenas me aportou um
aumento da responsabilidade e a honrosa denominação de “Coordenador” da dita,
aumento esse que nunca se refletiu na folha numérica que me enviavas todos os dias
vinte e um de cada mês…
Confesso-te uma vez mais que isso me chateava um pouquinho…mas cuidei da
referida prenda com carinho e tratei dela como se fosse minha…
Mas olha, a prenda com nome de Unidade que me deste, trouxe coisas boas, a
começar por todos os que comigo animadamente a alimentaram e a possibilidade de
podermos fazer a diferença na vida de tantos outros que também não conhecíamos de
lado nenhum, mas que com o olhar nos diziam OBRIGADO, sempre que lhe
proporcionávamos a possibilidade de terem uma vida mais digna…
Deixa-me falar-te dos que comigo privaram na intimidade da prenda que me deste e
dizer-te que foram todos extraordinários…alguns com oferendas de outra dimensão,
partiram e foram merecidamente ser felizes noutras paragens…outros foram e
voltaram…tendo sido recebidos como filhos pródigos, independentemente do regresso
não se ter ficado a dever a inquietantes saudades…
Eu fiquei…sempre…até hoje…
Como sabes, a teu pedido, representei-te em vários cantos do planeta…e nessas
incursões falava de ti com entusiamo e orgulho, a pontos de muitos te invejarem e te
querem conhecer de perto…
Claro que te agradeço as missões externas que me confiaste, sem as quais dificilmente
poderia ter mascado folhas de coca a três mil e seiscentos metros de altitude em La
Paz, ver os tachos nas roças em São Tomé ou a imensidão da Praça de
Tian’anmenTiananmen em Pequim, jornadas essas que certamente me
enriqueceram…obrigado por isso
Não te maço mais, se calhar acabavam os dois a fazer uma homenagem aos que te
serviram e não podem hoje lamentar que tu também vais partir. Uma vénia para todos
eles.
Deixas-me triste, já com saudades, muitos conhecidos e entre eles alguns bons amigos.
Obrigado por tudo o que deste.
PS – Desculpa o desabafo, mas no meio de tantos a que pomposamente
entregaste…nunca te lembraste de mim e dos que tanto lutaram pela prenda que nos
deste para nos dares um louvor…certamente não o merecemos!
Orlando Ribeiro