DIÁLOGO DE SURDOS
São diversos os argumentos – de natureza religiosa, cultural e social – que pretensamente fundamentam o uso da burca.
Perguntem ao “Ministério para a Propagação da Virtude e a Prevenção do Vício” (Afeganistão), e ele logo vos dirá, entre duas bastonadas, que a ocultação da cara e dos cabelos concretiza a mais sublime expressão feminina das qualidades de modéstia, respeito e obediência (leia-se auto-cancelamento, subalternidade e servidão), atributos que as mulheres ocidentais, fartas de paternalismos prepotentes, desde há muito desdenham.
O uso da burca é muitas vezes apoiado como forma de esconder as formas do corpo, de modo a proteger a mulher contra as tentações de assédio masculino, assim precavendo as incontroláveis arremetidas e os incontidos impulsos de machos desgovernados, a salivar por sexo.
Assalta-me a memória um fado antigo, que assim cantava:
“Ó sua descaradona,
Tire a roupa da janela,
Que essa camisa, sem a dona,
Lembra-me a dona sem ela.”
Nem o puritaníssimo Estado Novo se lembrou, para evitar a mecânica passagem ao tresloucado acto, motivada por pensamentos impuros, de proibir as donas de casa de pendurar a sua roupa íntima.
E já passaram cerca de quatro décadas sobre o infeliz reconhecimento judicial da “coutada do macho ibérico”, sentença de má memória, prontamente repudiada.
Não mais pega nem convence o estereótipo do infrene desvario sexual masculino, provocado por hormonas desnorteadas na presença de uma mulher atraente.
Por conseguinte, é lógico reconhecer-se que não fica especialmente vulnerável, no contexto da sociedade portuguesa, toda a mulher, nacional ou estrangeira, que se proponha caminhar de cara destapada e cabelos descobertos.
Se outras razões fossem necessárias para justificar a interdição do uso da burca em espaço público, elas aí ficam, transcritas duma recente crónica de António Barreto, que só posso aplaudir:
“…Tradição? Sim, mas detestável.
Religião? Talvez, mas opressiva.
Identidade? Com certeza, mas odiosa.
De costume? Claro, mas repulsivo.
Questão de género? Óbvio, mas execrável.”
A permissão, no Ocidente democrático, de utilização de burqa nos espaços públicos é um exemplo de abdicação, de oportunismo e de negação dos seus próprios valores.
É sinal de perversão e de corrupção moral. É o medo de existir e de afirmar. É o receio de ser quem é.
É a perda de solidariedade, de compaixão e de fraternidade perante mais de metade dos seres humanos.
A burqa é um gesto de violência, de opressão, de desumanidade e de exploração das mulheres pelos homens.
Couraça repressiva e sinal de propriedade dos machos ciumentos e inseguros, instrumento de autoridade prepotente.
Afirmação da condição inferior e servil das mulheres.
Garantia que a mulher é objecto de uso sexual, criada de servir e instrumento de reprodução.
O Ocidente democrático não deve tolerar.
(…) A burqa contraria um princípio da sociedade democrática: a identidade pessoal
(…) Esconder a identidade de alguém é um gesto degradante para a vítima e para todos nós que somos obrigados a conviver com tal prática desumana.
Zépestana | 02 out 2025