Nunca houve tantos imigrantes regularizados no país, mais de um milhão. Mas também nunca foi tão elevado o fluxo de novas chegadas e de processos pendentes. Num ano em que se testa um novo sistema de fronteiras, pela primeira vez em 30 anos sem o SEF, equilíbrio entre assegurar direitos fundamentais e segurança, está no topo das preocupações. O DN ouviu a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo), a Casa do Brasil, o JRS (Serviço Jesuíta aos Refugiados), Ana Rita Gil, Nelson Lourenço e Jorge Silva Carvalho.

Lisboa,21/11/2023 – Reportagem com emigrantes na Rua do Benformoso. Na imagem rua do Benformoso .PAULO SPRANGER/ GLOBAL IMAGENS )
Até ao passado dia 18, a população estrangeira residente em Portugal totalizava “mais de um milhão” de pessoas. De acordo com os dados facultados pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que não precisou aquele número, apesar da insistência do DN, a comunidade brasileira era a maior, com 365.405 membros que obtiveram autorização de residência, seguida, muito longe, da comunidade ucraniana, com 74.475 e da angolana, com 53.810.
Ao “mais de um milhão”, diz a AIMA, somam-se 146 mil imigrantes com vistos de residência CPLP (Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa).
Juntam-se ainda mais 19 300 vistos de procura de trabalho concedidos nos consulados de Portugal dos países da CPLP e que, segundo fonte oficial do ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), são liderados também pelo Brasil, seguindo por Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Serão, pelo menos, um milhão e 165.300 cidadãos estrangeiros a viver oficialmente em Portugal.
Em outubro, num balanço do ainda existente Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estavam registadas um milhão e 88 mil autorizações de residência, as quais somadas aos vistos de proteção temporária concedidos a cidadãos ucranianos, aos vistos CPLP e de procura de trabalho havia, nessa altura, cerca de 1,3 milhões de estrangeiros a viver legalmente em Portugal.
O DN tentou perceber, junto à AIMA, esta diferença, mas não foi ainda possível.
Com a diferença de, apesar de ser também a comunidade brasileira a liderar, seguida da ucraniana, nessa data estavam os ingleses em terceiro lugar, enquanto agora são os angolanos.
Nesse balanço, o SEF assumia que havia 292.000 manifestações de interesse formalizadas por cidadãos estrangeiros para obtenção de uma autorização de residência em Portugal, através da plataforma eletrónica do Sistema Automático de Pré-Agendamento (SAPA). A média de registo de pedidos, informou o SEF, estava nos 1000 por dia.
Desta vez, com a informação do lado da AIMA, esta não diz quantos processos estão pendentes – mas a manter-se a média podem já estar na casa dos 400 mil – nem avança com previsões do número total de regularizações para 2024, as quais, a manter-se o ritmo de manifestações de interesse, podem aproximar-se dos dois milhões.
É este o cenário que receberá o ano de 2024. Nunca houve tantos imigrantes regularizados no país, mais de um milhão, com direitos e deveres. Mas também nunca foi tão elevado o fluxo de novas chegadas e de processos pendentes.
Num ano em que se testa um novo sistema de controlo de fronteiras, pela primeira vez em 30 anos sem o SEF, deverá estar na primeira linha de preocupações de qualquer que seja o governo que saia das eleições de março, o equilíbrio entre os Direitos Humanos, os princípios humanitários e a disponibilidade dos portugueses para o acolhimento de imigrantes; mas também a garantia da sua entrada pelas vias legais previstas, fora das redes criminosas, e a sua integração, afastando riscos de segurança.
Acima de tudo pela proteção, em primeiro lugar dos próprios imigrantes, mas também para esvaziar o discurso xenófobo já fraturante em vários países europeus.
Portugal tem uma demografia crítica, com uma população envelhecida e baixa taxa de natalidade. A necessidade de atrair imigrantes é a resposta com resultados mais céleres para ajudar a resolver carências de mão de obra. Mas a solução não passa certamente por uma atitude de “porta aberta”, mas pela adopção de uma política de imigração, rigorosa e com objectivos bem definidos, que tenha em atenção o perfil dos imigrantes que Portugal necessita, com medidas eficazes de integração na sociedade, começando pelo aprendizagem da língua portuguesa, e uma atenção particular à entrada grupos ligados à criminalidade internacional. Não criar um adequado quadro regulador da entrada de imigrantes poderá colocar o nosso país na situação preocupante de insegurança da Bélgica, da Holanda ou da Suécia. Não acompanhar no tempo a integração da população migrante pode criar os graves problemas de segurança com as segundas e terceiras gerações que a França conhece. Não criar as condições para construir a sua identificação com a identidade nacional pode levar à guetização das cidades com os problemas que lhe estão segurança associados, assinala Nelson Lourenço, presidente do Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança e professor catedrático jubilado da Universidade Nova de Lisboa.
Controlar para prevenir
O porta-voz da AIMA trata de garantir, como “principais desafios” para o próximo ano, uma redução significativa das pendências, em resultado da mudança de procedimentos, através da digitalização e da implementação de um programa de recuperação de pendências em larga escala; a disponibilização do Portal de Serviços AIMA que permita submeter e pagar todos os requerimentos dirigidos à Agência, começando pelos pedidos de reagrupamento familiar; e a adoção de uma estratégia a quatro anos, com planos operacionais a dois anos, para a promoção da aprendizagem da Língua Portuguesa, já com medidas a adotar em 2024. E é tudo.
Ana Rita Gil, professora na Faculdade de Direito de Lisboa, doutorada direitos fundamentais de imigração, que co-coordenou, com Carlos Blanco de Morais, um estudo da Lisbon Public Law sobre a perceção que os portugueses têm da imigração no nosso país, antevê “a estabilização e operacionalização do funcionamento da AIMA e da nova estrutura de controlo de fronteiras assegurada pela PSP e GNR”, como os maiores desafios.

Lisboa, 30/10/2023 – A Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) começa hoje a funcionar substituindo o extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. A nova agência pretende facilitar e acelerar o processo de atribuição de residência a estrangeiros.
Como prioridades, salienta que seja “criada uma verdadeira política de imigração, pensando no que o país precisa que capacidades de acolhimento tem, como integrar as pessoas e responder às preocupações da sociedade de acolhimento, que ficaram expressas no estudo do Lisbon Public Law”.
Adverte que “não olhar para essas preocupações é meio caminho andado para clivagens sociais e fracturas entre comunidades residentes. No meu entender, optar entre a manutenção de um visto de procura de trabalho e um esquema de regularização. Só consigo ser adepta do primeiro se mantivermos o segundo apenas para questões humanitárias. A entrada ilegal não pode ser o meio normal de entrada no país. Os consulados, por seu turno, têm de assegurar capacidade de resposta aos pedidos de quem quer imigrar regularmente, senão as pessoas vão continuar a preferir a via mais fácil da imigração clandestina ou através de “esquemas””.
Sublinhe-se que, sendo a falta de mão-de-obra um dos principais argumentos do governo para atrair a imigração, estudos divulgados recentemente, por ocasião do Dia Internacional dos Migrantes, indicam que em 2022, a taxa de desemprego da população estrangeira, proveniente de países de fora da União Europeia, era mais do dobro da média nacional, com 14,3% de desemprego em comparação com 6,1% da média portuguesa.
Segundo o Eurostat, mais de um em cada três estrangeiros, no nosso país, tem um contrato de trabalho precário, em contraste com 16% dos trabalhadores portugueses. Portugal é, ainda, apontado como o quarto país com maior precariedade laboral entre os estrangeiros, a seguir à Croácia (48%), Países Baixos (38%) e à Polónia (36%).
Os últimos dados, apresentados pela Pordata, dão ainda conta de que 31% dos estrangeiros residentes em Portugal estão em situação de pobreza ou exclusão social, quando na população portuguesa essa percentagem é de 19,8%.
“Capacidade de acolhimento depende da vontade política”
Do ponto de vista humanitário, de apoio aos imigrantes, o JRS – Serviço Jesuíta para os Refugiados, uma das mais importantes organizações neste campo, lembra que “tivemos nestes últimos anos duas situações que mostram que há capacidade de acolher pessoas em Portugal, mesmo quando se acreditava que tal não era possível: o acolhimento de pessoas vindas do Afeganistão, em 2021 e da Ucrânia em 2022. Estas situações vieram comprovar que a capacidade de acolhimento depende da vontade política e da Sociedade Civil. A capacidade de integração das pessoas imigrantes em Portugal depende também da vontade das várias entidades envolvidas nesse processo“.
Porém, o JRS mostra-se preocupada com a “capacidade de resposta da AIMA para fazer face ao número de processos que herda, desde logo, ao nível dos recursos humanos e tecnológicos ao dispor desta entidade”.
Como “primeiro grande desafio a ser ultrapassado em 2024 é deixar de haver vias migratórias que não sejam seguras“, destacando as “dificuldades nos consulados” que “alimentam as redes ilegais”, bem como o “peso da burocracia e os atrasos nos processos de regularização”.
Fonte oficial do MNE responde que “para responder à crescente procura de atos consulares, que não se limitam aos pedidos de visto, o MNE tem vindo – e continuará a fazê-lo – a reforçar os recursos humanos nos postos consulares, bem como a investir nos meios tecnológicos que, em segurança, introduzam menor consumo de tempo na realização dos atos. Entre eles, destaque para o desenvolvimento da estrutura tecnológica da Rede de Pedido de Vistos, para a atualização do sistema de agendamento e da plataforma E-visa, para a aposta numa maior digitalização no fluxo dos processos de requerimento de visto”.
Como uma das principais representantes da comunidade brasileira, a Casa Brasil, destaca também o papel da AIMA nas suas preocupações. “Temos muitas preocupações com o processo de transição, há imensos processos atrasados e pendentes, as pessoas imigrantes têm tido dificuldades em fazer o reagrupamento familiar, renovar as suas autorizações de residência e concluir os seus processos de manifestação de interesse para se regularizar. É esperado que um processo de transição seja complexo, mas há muita falta de informação, diálogo, comunicação e informações desencontradas. Isto causa ansiedade e preocupações legítimas nas pessoas imigrantes”, assevera Ana Paula Costa, vice-presidente deste organismo.
A “habitação” é “sem dúvida, atualmente o maior desafio, pois a disponibilidade de casas é baixa e os valores estão exorbitantes”. Outro problema a enfrentar é “o aumento dos episódios de xenofobia e racismo, fomentados pelo discurso de ódio, por informações falsas e o aumento de movimentos anti-imigração“.
Combater a xenofobia, a radicalização e o tráfico de seres humanos
Uma imigração controlada e uma boa integração dos imigrantes é também visto, a nível de segurança interna, como condição para qualquer política de prevenção de radicalização e de discurso do ódio, dimensão acompanhada pelos serviços de informações.
“A Europa deve envidar todos os esforços para controlar os atuais fluxos migratórios: não os conseguindo evitar – como parar as embarcações frágeis e sobrelotadas de imigrantes ilegais desesperados que atravessam o Mar Mediterrâneo? – terá todo o interesse em controlá-los, até porque, independentemente da origem e religião dos imigrantes, são muitos e sérios os problemas que advêm de uma imigração descontrolada, como falhas na integração social, dificuldade dos Estados para fazer cumprir as suas leis e maior propensão face a processos de radicalização. Em contraponto, as vantagens de se conseguir controlar estes movimentos, através da definição e imposição, pelos Estados, de critérios apertados na escolha dos imigrantes, acarretará diversas vantagens, como a facilidade de integração, com todos os benefícios sociais e económicos que daí podem advir. Na verdade, privilegiar os imigrantes em função da sua origem e outras características, não deve ser confundido com racismo e/ou discriminação, sendo o seu objetivo o de priorizar fatores integradores dos imigrantes nas comunidades de destino”, sintetiza Jorge Silva Carvalho, ex-diretor-geral do Sistema de Informações Estratégicas de Defesa.
“Uma vez que a integração dos imigrantes é um processo multidimensional, fatores como a língua comum e a capacidade de adaptação intercultural, devem ser elementos considerados, para bem da integração destas comunidades de imigrantes, mas também das sociedades de acolhimento. Pese embora estas realidades (integração/radicalização) assumam contornos muito diversos e as variáveis sejam incomensuráveis, não deixa de ser realidade que se as comunidades de imigrantes se conseguirem integrar, tal poderá trazer evidentes vantagens, como uma menor permeabilidade face a tentativas de radicalização por parte dos imigrantes, mas também permitirá combater a xenofobia, a exclusão, a radicalização e as narrativas de “nós contra eles” entre as comunidades recetoras. Há, assim, que promover o respeito mútuo e fomentar o sentimento de pertença dos imigrantes, o que não significa, se bem enquadrado, uma diluição ou perda dos valores tradicionais das sociedades recetores”, conclui.
Ainda do ponto de vista da segurança, o deputado do PSD André Coelho Lima, que faz parte do Conselho Superior de Segurança Interna e foi eleito neste mês “Special Representative” da OSCE (há 15 entre os 57 estados-membros), chama atenção para os “crimes associados à imigração ilegal”, como um importante desafio em 2024.
Nomeadamente, “o tráfico de seres humanos e crimes conexos, exploração laboral, fraude documental”. Esta era “a área de excelência do SEF (muito embora o tráfico de seres humanos já estivesse na alçada da PJ), sendo indiscutível que os crimes que estão nesta órbita vão continuar a ser um desafio para a Segurança Interna.
Considera que, “na circunstância presente da extinção do SEF e da mudança de ministro mesmo no início da implantação das estruturas sucedâneas, traz um interesse adicional ao tema”.
Do seu ponto de vista, “o agravamento da atividade associada à prevenção e investigação criminal referente ao tráfico de pessoas e entrada e permanência ilegal, (observou-se um aumento de 127% de deteções de fraude documental no ano de 2022 e tudo indica que vai ser difícil estancar e/ou prevenir estas situações) são desafios evidentes que põe este tema no topo da agenda”.