FRONTEIRAS À MODA DO KREMLIN
1. Tudo o que existe expõe, como uma moeda antiga, duas faces inseparáveis: o verso e o reverso. A luz convive com a sombra, a virtude com o pecado, os benefícios com os custos. Não há rosas sem espinhos, nem há bela sem senão. Esta ambivalência está presente em todos os aspectos da vida e aplica-se, naturalmente, às fronteiras, que muitos gostariam de riscar do mapa – pelos incómodos e agravos que comportam -, sem levar em conta os préstimos e méritos que fundamentam a sua irremovível necessidade.
Considerando esta dúplice perspectiva, bem se poderá dizer das fronteiras, mutatis mutandis, o que alguém (macho anacrónico, bem entendido) já divertidamente comentou sobre as mulheres: não se pode viver com elas, nem se pode viver sem elas.
Por muito forte que seja o desejo utópico de as suprimir, de forma a permitir a desimpedida circulação de pessoas e bens, o certo é que a realidade geopolítica e a ordem internacional que acomoda e rege as relações inter-estatais, não só não as dispensam, como as proclamam como instrumentos cruciais de estabilidade e garantes de sobrevivência dos Estados.
O ideário liberal-legalista que desde há muito inspira o ordenamento internacional, plasmado no conjunto de normas, regras, instituições e padrões que regem as relações entre os Estados soberanos, assenta em algumas traves mestras: a autodeterminação dos povos, a segurança colectiva, a primazia do direito internacional e, last bus not least, a soberania e a integridade territorial, estas últimas asseguradas pela inviolabilidade das fronteiras, insusceptíveis de alteração pela força.
Desde a Paz de Vestfália, em 1648, o princípio da não-ingerência e da integridade territorial tornou-se um dos pilares da convivência entre nações.
Aí está , a confirmá-lo, o artigo 2º, nº 4, da Carta das Nações Unidas, de 1945: “Todos os Membros se absterão, nas suas relações internacionais, de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado…”.
No mesmo sentido, a inviolabilidade das fronteiras surge estipulada na Declaração sobre Princípios de Direito Internacional relativos às Relações Amigáveis entre os Estados (Resolução 2625 da Assembleia Geral da ONU, 1970), no Acto Final de Helsínquia (1975), em diversos outros Tratados e Convenções regionais, e bem assim na jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça.
2. Vem tudo isto a propósito da situação que actualmente se vive na Ucrânia. E dos seus antecedentes.
Calhou-me assistir, recentemente, à exibição de um documentário intitulado “Putin and the Five Seas”, produzido pelo canal ARTE.tv., que recupera as imagens de uma sessão pública ocorrida em 24 de Novembro de 2016, quando o presidente Vladimir Putin visitou a Sociedade de Geografia da Federação Russa.
Por entre aplausos, Putin dirige-se ao palco e interage com um jovem estudante, pré-adolescente, a quem pergunta onde se situam as fronteiras da Rússia, recebendo como ajuizada resposta: situam-se no estreito de Behring, entre a Rússia e os Estados Unidos. Ao que o presidente russo contrapõe, com um sorriso travesso: “As fronteiras da Rússia nunca terminam.”
Esta declaração constituiria apenas um mau presságio para o futuro, não fora a circunstância de, já antes, ter ocorrido a invasão pelo exército russo da Geórgia (2008) e da Chechénia (2009), além da anexação da Crimeia (2014). Investidas seguidas da invasão da Ucrânia, no dia 24 de Fevereiro de 2022, data do início do maior e mais longo confronto militar na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Tudo isto em clara transgressão das normas de direito internacional, que explicitamente proíbe e considera ilegal a invasão de Estados soberanos e a apropriação territorial de territórios pela ameaça ou pela força.
O breve diálogo de Putin com o jovem estudante (documentado nas imagens que ladeiam esta crónica) extravasa, afinal, a natureza de uma estouvada bravata, de uma mera “boutade”, de uma fortuita bazófia, para expressarem uma verdadeira e consistente política de Estado.
Em meia dúzia de palavras, o presidente russo fez tábua rasa do direito internacional e estilhaçou a soberania dos catorze países que partilham fronteiras terrestres com a Federação Russa: Noruega, Finlândia, Estónia, Letónia, Bielorrússia, Ucrânia, Geórgia, Azerbaijão, Casaquistão, China, Mongólia, Coreia do Norte e (via Kaliningrado), a Lituânia e a Polónia.
Numa adaptação livre do poema de Ary dos Santos (“Natal é quando o homem quiser”), o actual inquilino do Kremlin decreta: “As fronteiras são onde o ditador quiser.”
Não muito diferente do que terá pensado Hitler ao invadir a Polónia, em 1939.
Ou Saddam Hussein, quando o exército iraquiano se apoderou do Kwait, em 1990.
3. É assim, lamentavelmente, que hoje nos encontramos num impensável e distópico cenário global. Perante a impotência da comunidade internacional, a secundarização da diplomacia e a debilidade dos organismos de prevenção e mediação, vai-se impondo uma assimetria entre, por um lado, as grandes potências, e por outro, os Estados vassalos. Ganha espaço uma espécie de revisionismo geopolítico, deixando as fronteiras de constituir garantia bastante de coexistência pacífica.
Face aos ímpetos expansionistas e ao apetite insaciável de políticos autoritários, os territórios vizinhos, sobretudo se abundantes em recursos naturais, tornam-se um íman potente, uma atração irresistível. A fazer lembrar o que se passou na “Partilha de África”, na viragem do século XIX para o século XX, quando as principais potências colonizadoras (Grã-Bretanha, Bélgica, França, Alemanha e Portugal) impunham a sua força aos povos africanos, na ânsia de arrecadar matérias-primas tidas então por indispensáveis, como a borracha, os diamantes, o cobre, o óleo de palma, o cacau ou o algodão.
Na versão contemporânea, a cobiça incide nas terras raras, no lítio, titânio, manganês, urânio, grafite e carvão.
E a lei do mais forte, hoje como nessa época, impõe-se pela assimetria dos meios de defesa disponíveis. No início do século XX, escreveu o poeta inglês Hilaire Belloc, referindo-se ao contraste entre europeus e africanos: “Aconteça o que acontecer, nós temos a pistola “Maxim”, e eles não.”
Na versão contemporânea: “Haja o que houver, nós temos os mísseis Tomahawk, ou os drones Shahed, e eles não.”

Zépestana | 28 nov 2025