Pedro Matos | 07 dezembro 2023
Corria o ano de 1994, nos primórdios da existência do SEF, quando um novato inspetor do mesmo serviço assistia ao noticiário na TV, esticado no sofá de sua casa, numa sexta-feira à noite.
O SEF tinha então recusado entrada em território nacional à cidadã angolana Vuvu Grace e à filha menor, tendo o marido, cidadão angolano Sousa Bruno, que se encontrava já em Portugal, ido para a porta do aeroporto reclamar a entrada dos seus familiares.
Este caso tornou-se rapidamente mediático e de imediato se configurou um braço-de-ferro entre o Governo PSD e a oposição, liderada então pelo PS, sobre este caso em particular e a política migratória em geral. Todos os telejornais e as manchetes nos jornais focavam os desenvolvimentos no chamado “caso Vuvu”.
Organizaram-se greves de fome à porta do aeroporto (com o Sousa Bruno e um grupo de várias pessoas em solidariedade), visita de políticos da oposição e da primeira-dama à Vuvu Grace, imprensa com correspondentes em permanência no local, etc,. O PS também envolveu um escritório de advogados de renome na defesa do caso, estando inclusiva e diretamente envolvido neste caso o então advogado e futuro Primeiro-Ministro de Portugal (que veio mais tarde a orquestrar a extinção do SEF).
Voltando ao pacato lar do inspetor do SEF, estando este tranquilamente a ver o noticiário, ao ver a focagem das camaras da TV sobre o marido da Vuvu Grace, de imediato reparou que a face do mesmo lhe era familiar… O olhar meio vesgo do Sousa não enganava: já tinha havido interação com a referido cidadão.
O referido inspetor trabalhava à época na Divisão de Refugiados do SEF e, embora recentemente se critique o facto de os pedidos de asilo estarem sob alçada do mesmo serviço que controlava os estrangeiros na fronteira e em território nacional, a verdade é que todos os funcionários que trabalhavam com requerentes de asilo eram isentos na avaliação dos mesmos e, a menos que houvesse evidentes provas de que o pedido era fraudulento, os pareceres sobre a concessão de direito de asilo eram positivos, desde que preenchidos os requisitos previstos na legislação nacional e na Convenção de Genebra de 1951.
Claro que o facto de os inspetores trabalharem sob o teto de um mesmo serviço tinha também a vantagem de ser mais fácil a verificação de abusos. E, de facto, no caso do cidadão Sousa Bruno havia uma utilização abusiva de outra identidade e outra nacionalidade por parte do mesmo, que se veio a revelar crucial no desfecho do caso.
Na verdade, com base na peritagem e instinto do inspetor, o mesmo consultou os dossiers (em papel, pois a informatização do SEF dava também os primeiros passos) sob sua responsabilidade e conseguiu apurar, por comparação fotográfica (e com base na sua própria memória fotográfica) que o cidadão angolano Sousa Bruno tinha apresentado pedido de asilo com uma identidade diferente e com a nacionalidade de cidadão zairense (que à época tinham mais possibilidades de obterem estatuto de refugiado, invocando perseguição por parte do regime de Mobutu).
Evidente que, no contexto africano da época e residindo os cidadãos numa zona fronteiriça entre Angola e o Zaire, era fácil obter documentos zairenses com base numa outra identidade e, por outro lado, documentos angolanos com identidade diversa. Nessa zona fronteiriça, até a questão da nacionalidade era diluída e utilizada conforme as necessidades. Contudo, num contexto europeu e perante a legislação portuguesa, apresentarem-se com identidades diversas revelava-se uma fraude.
Claro que este novo elemento do processo deu crédito ao Governo para se defender e, em grande medida, descredibilizou o cidadão angolano Bruno, porquanto com a utilização dessa segunda identidade já tinha beneficiado de significativo apoio do Estado português em apoios sociais e alojamento (na ordem dos milhares de euros), com base numa identidade e nacionalidade diversas.
Com base no argumento da dupla identidade, o Governo assumiu a sua defesa e o «circo mediático» em torno do caso arrefeceu de imediato — pararam as greves de fome, o caso passou para segundo plano na imprensa, etc.
Quanto ao inspetor, ficou obviamente orgulhoso por ter conseguido obter esse importante elemento, tendo ficado com a consciência do dever cumprido (atitude que sempre pautou a conduta dos elementos da carreira de investigação e fiscalização do SEF).
O desfecho do caso evoluiu para um pedido de habeas corpus por parte da equipa de advogados, que resultou na autorização de entrada em Portugal de Vuvu Grace e a filha.
Obviamente, a conclusão é a de que, atualmente e com os meios informáticos existentes, é fácil detetar essas situações por via do cruzamento de bases de dados de fotos e impressões digitais (como seja, por exemplo, a base de dados do Eurodac), que podem ser comparadas automaticamente. Naquela época, valia a memória fotográfica e profissionalismo dos elementos do SEF, para se poder avaliar casos semelhantes.
Acresce que o facto de os arquivos e registos de cidadãos estrangeiros (seja na qualidade de cidadãos residentes ou de requerentes de asilo) estarem na alçada do mesmo serviço facilitava a clarificação e resolução de casos com registo de múltiplas identidades, como o do «caso Vuvu». Vamos agora ver o que se passará, no futuro e em situações equivalentes, com a pulverização das competências do SEF em serviços diversificados.