PONTES E FRONTEIRAS

1. Desde sempre, as pontes têm uma forte presença no imaginário colectivo, representando a possibilidade de união de territórios e de povos vizinhos, geograficamente separados pelas águas de um rio. Elas respondem ao desejo, acalentado pelas populações de ambas as margens, de comunicarem entre si e de harmoniosamente conviverem, trocando bens e serviços.
Uma ponte que se oferece à travessia é sempre uma promessa de encontro, de diálogo, de partilha e convergência. É um desafiador passadiço suspenso no ar, que incita ao conhecimento e à descoberta de outras margens.
Ao contrário, os muros tendem a suscitar sentimentos nefastos, evocando descontinuidades, rupturas, segregações.
As fronteiras são frequentemente identificadas como muros, levando muito boa gente a proclamar, tropologicamente, que precisamos de construir mais e mais pontes, em vez de muros.
A verdade, contudo, é que também as pontes podem assumir-se como fronteiras, ganhando, nessas circunstâncias, a designação de “pontes internacionais”, por ligarem dois diferentes países, cruzando uma fronteira geográfica, como um rio, assim facilitando o trânsito de pessoas e de veículos.
2. Em decorrência da sua vocação e natureza, a história das pontes reúne episódios festivos, de exultante celebração, ao lado de outros mais dramáticos, senão mesmo trágicos, envolvendo extrema violência.
Se há pontes malfadadas, de ruim destino, a ponte de Kerch, ligando a Rússia continental à península da Crimeia, está decerto entre elas. Com dupla aptidão (rodoviária e ferroviária) e 18 quilómetros de extensão, foi construída unilateralmente pela Federação Russa e inaugurada em 2018, quatro anos após a anexação da Crimeia.
A ponte foi considerada ilegal porque a Ucrânia, “como Estado costeiro no que diz respeito à Península da Crimeia”, não deu o seu consentimento para a construção. Também a Assembleia Geral das Nações Unidas e a União Europeia condenaram a construção da ponte por promover a integração forçada da península da Crimeia, ilegalmente anexada pela Rússia.
Dada a sua importância, não apenas simbólica mas estratégica, a ponte tornou-se um alvo militar legítimo para as forças ucranianas, apostadas em perturbar as linhas de abastecimento do exército russo.
Consequentemente, a ponte de Kerch foi alvo de pelo menos três fortes ataques ucranianos: em outubro de 2022 (camião-bomba), em julho de 2023 (drones marítimos), e em junho de 2025 (explosivos colocados nas fundações).
A destruição violenta é má-sina de muitas pontes, sobretudo por parte de exércitos em retirada: assim aconteceu com a ponte de Remagen, sobre o Reno (1945), bombardeada pelo próprio exército nazi, que também dinamitou, em 1944, a Ponte Maria Valéria, sobre o Danúbio, na fronteira entre Hungria e Eslováquia. A mesma sorte teve, muito antes, a Ponte das Barcas, sobre o Douro, incendiada pelas tropas napoleónicas para impedir o avanço das tropas luso-britânicas (1809).
3. Felizmente, os episódios edificantes sobrepõem-se aos incidentes belicosos, prevalecendo geralmente a vocação congregadora e o cunho aglutinador das pontes internacionais. Não surpreende, por isso, a coincidência de muitas delas terem sido crismadas com um mesmo – e inspirador – nome: “Ponte da Amizade”. É exactamente assim que se chama a ponte entre o Tajiquistão e o Afeganistão, sobre o rio Panj; e a ponte que liga o Brasil à Argentina sobre o rio Iguaçu; e a ponte que liga a China ao Nepal, sobre o rio Bothe Koshi; e a ponte entre a Tailândia e o Laos, sobre o rio Mecom; e a ponte entre o Uzbequistão e o Afeganistão, sobre o rio Amu Daria.
Há registo, até, de incidentes auspiciosos, de fraterna comunhão, ocorridos no tabuleiro de pontes internacionais. É o caso da ponte internacional sobre o rio Prut, em Ungheni, na fronteira entre a Roménia e a Moldávia. No dia 6 de Maio de 1990, pela primeira vez desde a segunda guerra mundial, centenas de milhares de pessoas – romenos e moldavos, que partilham uma mesma língua e idêntica cultura – puderam finalmente cruzar a fronteira comum, até então hermética, enfeitando espontaneamente a ponte com ramos de flores, numa festiva e pacífica manifestação. Desde então, a ponte de Ungheni foi rebaptizada como “Ponte das Flores”. Mas a informal festa durou pouco. A adesão da Roménia à União Europeia, a partir de 2007, tornou mais robusto e consistente o controlo da fronteira oriental do país.
4. Há pontes internacionais de toda a qualidade e para todos os gostos.
Das mais modernas (como a ponte de Øresund, que une a Dinamarca à Suécia, num total de 12 quilómetros) às mais antigas (como a ponte coberta, de madeira, de Bad Säckingen, sobre o Reno, unindo a Alemanha e a Suíça, que remonta ao século XIII), agora reservada a peões e ciclistas; ou a Ponte Vermelha, sobre o rio Khrami, que liga a Geórgia ao Azerbaijão e data do século XVII; ou a Ponte Segura, sobre o rio Erges, na fronteira entre Portugal (Beira Baixa) e Espanha, monumental ponte romana que data do século II.
Das mais longas (como a ponte do Rei Fahad, sobre o golfo Pérsico, que une a Arábia Saudita ao Bahrein, ao longo de 25 quilómetros) às mais pequenas, meros passadiços, como a que liga a povoação espanhola de El Marco à portuguesa Várzea Grande (concelho alentejano de Arronches), aberta apenas ao trânsito de peões e viaturas de duas rodas. É ela que figura na imagem que ilustra a presente crónica. Com seis metros de comprimento e 1,45 de largura, cruza a ribeira de Abrilongo e vem sendo anunciada como “a mais pequena ponte internacional do mundo”. No pódio desta competição bem poderá figurar, também, a pequena ponte pedonal que liga Portugal (aldeia de Cevide, concelho de Melgaço) a Espanha (aldeia de Acivido).
Zépestana | 14 dez 2025