UMA TERRA SEM FRONTEIRAS

Dos actuais seis continentes (actuais, porque nem sempre foram a presente meia dúzia), um único se destaca por não pertencer, quer no conjunto do seu território, quer em parcelas dele, a qualquer país.
Também por nele não residirem habitantes nativos, mas apenas moradores temporários de distintas nacionalidades.
E ainda por só conhecer uma única, externa e natural fronteira: aquela constituída pela Oceano Antártico, que rodeia o continente e é entendido como o prolongamento meridional dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico.
Com uma área de 14 milhões de quilómetros quadrados (cento e cinquenta vezes superior à área de Portugal), o “continente gelado” ou “continente branco”- nomes frequentemente atribuídos à Antártida – é coberto por uma imensa e espessa camada de gelo. E regista as mais baixas temperaturas do planeta, que já desceram (brrrrr…) aos 93 graus centígrados negativos.
Estas condições climáticas extremas, a que acresce uma prolongada escuridão, tornam praticamente inabitável toda a ampla área em torno do pólo sul.
Os raros e corajosos frequentadores da região (encapsulados em pequenas bases ao longo de alguns meses), são cientistas de vários países, incluindo portugueses, mormente peritos em biologia, astrofísica e geologia, entre outros ramos do conhecimento.
Até à data, a Antártida não conhece dono, nem donos.
Nenhum país é proprietário (e muito menos, reconhecido proprietário) de qualquer porção deste território. O que não significa que haja falta de interessados (nunca há…)em abocanhar uma fatia.
A corrida ao estudo e desbravamento do continente antártico decorreu em especial no século XIX e no primeiro terço do século XX, quando muitos exploradores pioneiros, patrocinados por diferentes países, ousaram penetrá-lo, incluindo o norueguês Roald Amundsen, primeiro homem a chegar ao pólo sul, em 1911.
Na ânsia de marcar território, com vista a uma possível consolidação futura de soberania, foram sendo utilizados expedientes diversos, sendo o mais comum a instalação de bases (estações de pesquisa e investigação) e observatórios meteorológicos. Nalguns casos, houve até recurso a outros e mais engenhosos artifícios destinados ao reforço de futuras reivindicações territoriais : a Alemanha de Hitler enviou dois hidroaviões que sobrevoaram os inóspitos gelos antárticos, largando pequenas bandeiras com a suástica nazi; os argentinos fizeram desembarcar numa das suas bases uma mulher grávida, que ali deu à luz o primeiro (e talvez único) nativo da Antártida, em 1977; e os britânicos abriram o primeiro posto de correios do sexto continente, logo celebrado como o mais meridional posto de correio do mundo.
Também não faltaram alguns confrontos, o mais grave dos quais envolvendo troca de tiros entre súbditos ingleses e argentinos.
Tudo isto contribuiu para se chegar, na década de 1950, a um consenso sobre a necessidade de adequada regulamentação e a conveniência de se definir o estatuto da Antártida num tratado específico. Em 1959, foi finalmente assinado o “Tratado da Antártida”, que entrou em vigor dois anos depois. Nos seus termos, é reservado todo o continente para exclusivo “uso pacífico e científico”, tornando-se oficialmente um território desmilitarizado e “uma reserva natural, devotada à paz e à ciência.”
O tratado, que será revisto em 2048, não anula, mas congela, pelo menos por um século, os apetites expansionistas de diversos países. De facto, ele próprio esclarece que a sua assinatura não significa nem implica uma renúncia a qualquer reivindicação territorial anterior.
Nesta altura pendem, embora interrompidas, reivindicações territoriais por parte de sete países: Argentina e Chile; Reino Unido, França e Noruega; Austrália e Nova Zelândia. E cerca de trinta países, signatários do Tratado da Antártida, têm presença activa no continente através de bases científicas.
O futuro dirá por quanto tempo a Antártida, cobiçada pelos seus enormes recursos naturais (com o petróleo à cabeça), conservará o actual estatuto e dispensará o estabelecimento de fronteiras terrestres.
Finalmente, uma advertência: a ilustração que acompanha esta crónica contém, deliberadamente, um contra-senso.
Ou não? Eis um teste à cultura geral do leitor, que desafio a examinar detalhadamente a imagem.
E a resposta é afirmativa: à margem de um texto sobre a Antártida, jamais deveria figurar um urso polar, espécie animal que nunca pôs as patas no hemisfério sul. Mais congruente seria o recurso a pinguins, focas ou baleias.
Foi só, caro leitor, para testar a sua atenção…
Zépestana | 22 nov 2025